A quem se dirige o Manifesto dos 70?

Manuel Raposo — 5 Abril 2014

Nao pagamosO sentido imediato que mais claramente se destaca do Manifesto dos 70 é este: a política do governo PSD-CDS-troika vai ser repudiada nas eleições legislativas de 2015 e os primeiros sinais podem ser dados já nas Europeias de 25 de Maio. Uma significativa deslocação de votos para a esquerda (PCP e BE); uma forte abstenção dos eleitores de centro que se sentem enganados, descalçando PSD e CDS; uma fraca vitória do PS — tudo isto pode criar uma grande fragilidade ao último ano de governo de Passos Coelho bem como ao governo que se seguirá. Prosseguindo as medidas de austeridade como até aqui, as condições sociais serão favoráveis a novas manifestações de descontentamento popular, as grandes movimentações de rua poderão voltar a agitar o país. Nem PS nem PSD teriam margem de apoio suficiente para prosseguir a política actual sem que a luta de classes se agudizasse; e as miragens de recuperação económica esfumar-se-iam.

Medidas cautelares

É contra esta eventualidade que o Manifesto procura tomar cautelas. Os 70 tentam com a sua proposta criar o consenso partidário em que Cavaco Silva tem insistido — mas centram esforços no PS, o possível vencedor das eleições, e não no PSD, o provável perdedor. Para os 70, Cavaco aposta no cavalo errado.

No plano político, portanto, o Manifesto expressa duas coisas, que são a marca da iniciativa: 1) a alternativa prática para um próximo governo é neste momento o PS; mas, 2) é preciso que o PS não fique prisioneiro da pressão à sua esquerda, expressa sobretudo nos protestos sociais e na expectativa popular de recuperar alguma coisa do que foi perdido nos últimos anos.
Ora, é para evitar isso que importa a presença activa de Ferreira Leite, Bagão Félix, Adriano Moreira, … mais António Saraiva e Vieira Lopes das confederações patronais da indústria e do comércio.
Independentemente, pois, da vontade dos signatários de esquerda, o consenso que coloca na mesma plataforma bloquistas, ex-PCPs, PSDs e CDSs descontentes, PSs “de esquerda”, ex-salazaristas, etc, é um consenso feito no terreno da direita — facto que não é incompatível com a crítica à governação de Passos Coelho.

A quem se dirigem os 70?

Em termos sociais, o Manifesto dirige-se às classes intermédias: pequenos e médios patrões (é esse o significado das assinaturas dos dirigentes da CIP e da CCP) dependentes de um mercado interno cada vez mais estreito, afogados em dívidas, sem crédito da banca, condenados a falir; mas também aos assalariados da Função Pública, aos professores, aos estudantes sem futuro, aos militares e polícias, aos pequenos profissionais liberais que vêem os rendimentos a descer e o desemprego no horizonte próximo.
O Manifesto procura convocar todos os sectores que constituem o centro social do país e diz-lhes: “Vocês ainda têm uma palavra a dar quanto ao nosso destino comum, na condição de rejeitarem tentações de radicalismo”.
E aí está o conteúdo do Manifesto a mostrar o que isso significa: respeitar escrupulosamente os mandamentos da União Europeia, jurar pagar a dívida até ao último tostão, não ousar denunciar, quanto mais pôr em causa, os interesses e a hegemonia do capital financeiro.

O Manifesto não é uma radical ofensiva das classes médias, revoltadas com o domínio esmagador do grande capital, dispostas a liderar um novo rumo político para o país. Elas não têm nem condições nem coragem para o fazer, porque temem que qualquer brecha aberta no sistema possa dar passagem às exigências da massa trabalhadora. Em termos práticos, objectivos, o manifesto representa uma tentativa de travar a descolagem das camadas pequeno-burguesas em relação às forças burguesas dominantes, divididas pelas agruras da crise, e evitar a degradação do sistema político.

Questão primeira: quem paga?

O ponto de partida do Manifesto é uma realidade óbvia, dita e redita: a austeridade empobrece a grande massa trabalhadora e assalariada, liquida a pequena e média propriedade, estrangula a possibilidade de desenvolvimento económico, não consegue travar o crescimento da dívida — e cria com isso condições para confrontos sociais mais agudos (“riscos de instabilidade política e de conflitualidade social”, avisa o texto).
A resposta do Manifesto a este problema resume-se em pedir mais tempo para pagar a dívida, a juros mais baixos — rejeitando repetidamente faltar a qualquer pagamento — na esperança de obter com isso um tempo de respiração que facilite “um robusto e sustentado crescimento” económico. Conta, com esta atitude “responsável”, ganhar as boas graças e a ”solidariedade” do capital e das instituições europeias para uma espécie de austeridade branda, alongada no tempo.

Mas a questão de fundo acerca da dívida é, em primeiro lugar, a de saber quem a paga — não em quanto tempo deve ela ser paga. Há os que acham que deve ser a massa trabalhadora a pagá-la, integral e rapidamente. Há os que alimentam a ilusão de repartir os custos. Os subscritores do Manifesto procuram abrir uma espécie de via intermédia entre uns e outros.

Mas há uma outra posição: a dos (poucos, embora) que defendem que, para os trabalhadores, a única posição profícua é rejeitar pagar a dívida, pautando as suas lutas de resistência por este propósito. Os ganhos imediatos, neste caso, serão certamente escassos — mas esta é a única posição que aponta ao nó do problema: a crise do sistema social capitalista, de que a dívida é apenas um dos frutos.


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