Nós, risco sistémico

António Louçã — 3 Maio 2013

A histeria do Governo em torno do chumbo de alguns pontos, nem por isso muitos, do OE no Tribunal Constitucional não parece vinda de quem paga, sem pestanejar, a factura do BPN, a dos swaps, a das PPP e tantas outras. É que o preço do chumbo andará por um quarto ou um quinto do buraco negro do BPN, que nunca mais acaba de revelar-se em toda a sua extensão, metade dos swaps, uma fracção ínfima das PPP.
Mas a Constituição só deve cumprir-se enquanto for de borla e os compromissos com os bancos já se sabe que têm um preço. E, para o preço do BPN, o Governo até tem um argumento que começa a faltar-lhe em tudo o mais: é que ele deve ser tão óbvio e inquestionável que até o PS, no seu tempo de Governo, se pôs também a pagá-lo sem discutir. Para o dos swaps, tem o de os negócios de casino virem do tempo da governação PS. Para o das PPP, o de ter sido essa governação socialista a fabricá-las em série.

Mas que moral existe em cumprir com todos esses compromissos, mesmo com a bênção do PS, se, com dois pesos e duas medidas, se violam os contratos com os trabalhadores e com os pensionistas? Ah, é que não se trata de um problema de moral. Claro, moral não há nenhuma. Mas um Governo pragmático e realista não pode deixar afundar a economia “só” por causa da moral.

O risco, explicam-nos os doutores do Governo, era sistémico. Não no caso dos swaps, porque esse dinheiro já se esfumou e nunca mais Tribunal de Contas algum voltará a por-lhe a vista em cima. Mas, no caso das PPP, se agora se considerasse ilegítimas as rendas chorudas aí envolvidas, adeus investidores, que doravante perderiam toda a confiança no Estado. E, no caso do BPN, se se declarasse a falência do banco, haveria — cá está o palavrão — “risco sistémico”, e talvez os outros bancos falissem todos, como um jogo de dominó. Se se fizesse pagar aos especuladores, que aí puseram o dinheiro com taxas dignas de D. Branca, e jurando, como juram, que não lhes cheirou a esturro, desencorajava-se qualquer especulação futura, com o cortejo de desgraças que isso traria ao país.

Entretanto, tornou-se evidente que a política de fazer pagar à economia real e a quem trabalha todo o historial de vigarices da nossa história recente é, ela própria, uma bomba com efeito “sistémico”: ao confiscar salários e pensões, ao sabotar o poder de compra das massas, o Governo criou precisamente o efeito-dominó que se dizia apostado em evitar. Fecham as pequenas empresas, os consumidores deixam de consumir, os jovens partem para o estrangeiro.

Importa alguma coisa ao Governo este “efeito sistémico”? Não, porque o seu projecto consiste em criar um monte de ruínas para reconstruir sobre elas um capitalismo selvagem.

Mas este Governo de videirinhos ou tecnocratas incultos nunca leu em lado algum aquela distinção clássica entre a classe em si e a classe para si. Além do “efeito sistémico” da classe em si, que tem reflexos económicos, que come menos e cala mais, que aceita salários mais baixos, que emigra, há o “efeito sistémico” da classe para si — que levanta a voz nas empresas, que sai à rua, que se organiza, que responde.

Em 15 de setembro, em 2 de março, o Governo começou a ouvir os ecos desse “efeito sistémico”. Ainda não os percebeu. E quando perceber já estará demitido, a dizer-nos o que pensa do inusitado fenómeno, em livros de memórias encomendados a agências de comunicação.


Comentários dos leitores

Fernando Rocha 12/5/2013, 22:52

A questão que se coloca é mesmo a do protesto popular, cada vez mais vigoroso.
Tenho muitos posts novos, mas onde tenho tudo mais arrumado é em www.misturagrossa.net. Um deles são propostas que considero bastante avançadas e que gostaria que vissem.


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