Fraude maciça nas eleições no Afeganistão

Manuel Raposo — 16 Setembro 2009

afeganistaocartune_72.jpgO artigo que agora divulgamos (escrito em final de Agosto e publicado na última edição em papel do MV) está neste momento desactualizado. Apenas por uma razão: os factos que entretanto vieram a lume, dando conta da fraude que foram as eleições no Afeganistão, ultrapassaram em muito as suspeitas que há poucas semanas era possível fundamentar. Pode hoje dizer-se, sejam quais forem as fontes, que se confirma por completo a viciação dos resultados da votação. Mas, acima de tudo, o descalabro que ficou à vista resultou numa inequívoca vitória política da resistência afegã e, consequentemente, em mais um problema sem saída para as forças ocidentais que levaram a guerra ao Afeganistão. Como tirar os pés do lamaçal é, agora, a única questão que as potências ocupantes têm a resolver.

Que validade podem ter eleições realizadas num país em estado de guerra generalizada e debaixo de ocupação militar? Para os EUA e para a União Europeia, e tratando-se do Afeganistão, a validade é inquestionável, mesmo contra todos os dados que ilustram a dimensão da fraude. Percebe-se porquê: a guerra está perdida e as eleições são um expediente para tentar dar verniz de legitimidade a um regime que apenas se mantém, até ver, graças às tropas da NATO.

Avaliem-se estes factos. Nas zonas dominadas pela resistência Talibã, que boicotou as eleições, o nível de votação ficou entre os 5 e os 10 %. Nas regiões onde a influência Talibã é menor, os senhores feudais (que são também os senhores da guerra) controlaram a votação de cada um dos eleitores. A “grande participação” de mulheres anunciada pelos defensores do regime resultou da autorização dada aos maridos e aos homens em geral para inscreverem as mulheres da família nos cadernos eleitorais e para votarem por elas, levando na mão as respectivas cédulas. O candidato Abdulah Abdulah (ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e principal rival do actual presidente Karzai) disse alto e bom som que Kaizai encheu urnas com votos falsificados e roubou urnas com votos que não lhe davam jeito. Outros candidatos (eram mais de 40!) denunciaram mais de mil casos de fraude.

Faça-se, entretanto, esta comparação: ainda há poucas semanas, a comunicação social e os meios políticos europeus e norte-americanos disseram cobras e lagartos das eleições presidenciais no Irão – que no entanto foram sancionadas como legítimas, justas e livres pelos observadores internacionais presentes; agora, diante da impossibilidade material de organizar um escrutínio sério e perante evidentes fraudes, as eleições afegãs são saudadas como “uma verdadeira vitória para a jovem democracia afegã” (Euronews).

Este esforço de legitimação do regime instalado em Cabul destina-se principalmente à opinião pública norte-americana e europeia, cada vez mais renitente em apoiar o envio de tropas e o dispêndio de dinheiro. Acontece, porém, que aos olhos dos principais protagonistas, os afegãos, uma mascarada como a que se passou em 20 de Agosto apenas contribui para desacreditar mais o regime que lhes foi imposto de fora.

Novos dados

O jornal britânico The Guardian (edição de 11-17 Setembro) atribuía a “vitória” de Karzai a “fraude e medo” e comentava que “só um milagre ou uma massiva contra-fraude poderia impedir [o actual presidente] de ultrapassar os 50%” para ser eleito à primeira volta. Essa “vitória”, continua The Guardian, é devida a “gritantes e sistemáticos votos viciados, subornos e intimidação”.

Era a esta desgraça, perfeitamente visível desde início, que o inimitável director do Público dava, em 20 de Agosto, todo o apoio, dizendo que se tratava de defender “o embrião de democracia que existe no Afeganistão”; e advogando, para que tal defesa fosse eficaz, o envio de mais tropas para o terreno.
Diante dos factos, porém, um igualmente inimitável subdirector do Público, veio, em 10 de Setembro, culpar “a teimosia de avançar para eleições sem nenhuma garantia de torná-las credíveis”, e reconhecer que a “embrulhada eleitoral em que o mundo (!?) agora se enredou, só poderá ajudar [os talibã]”. Fracassadas tanto a solução militar como a manobra eleitoral, resta ao editorialista do Público pugnar pela …”astúcia”: “Vai ser preciso muita astúcia para reverter favoravelmente esta situação trágica”!

Mas, neste caso, não há astúcia que valha. A tentativa das potências imperialistas de legitimarem a ocupação militar do Afeganistão – e o regime que lá colocaram no poder – através de eleições a todo o custo (como fizeram também no Iraque) resultou no contrário. Todos hoje vêem que se tratou de uma mascarada de democracia, que a resistência tinha razão em boicotar as eleições, que o regime de Cabul não tem qualquer legitimidade. Às vitórias militares, a resistência afegã soma agora uma importante vitória política.

Como lucidamente comentava The Guardian, o melhor é Obama “baixar as expectativas e pôr-se a andar [do Afeganistão] tão depressa quanto a decência o exige”.


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