Sete reflexões sobre a actual crise

João Bernardo — 17 Outubro 2008

Contrariamente ao que é hábito afirmar na esquerda, tenho defendido desde há bastantes anos a inutilidade de proceder a uma teoria das crises no capitalismo. Cada crise é específica e resulta do facto de o sistema económico, com o agravamento de certas contradições, não conseguir dar uma resposta a obstáculos que noutras circunstâncias seriam facilmente superados. Tudo depende, então, de saber quais as contradições que se agravaram, e este diagnóstico muda de uma crise para outra.
Além disso, as crises sectoriais são frequentemente confundidas com crises globais ou, pior ainda, o funcionamento cíclico da economia é confundido com uma crise. Na verdade, a extrema-esquerda revela nestas ocasiões a sua fragilidade fundamental, esperando que se consiga, graças à crise do capital, o que não se tem obtido pela força própria do proletariado. As luminárias da revolução ainda estão sem decidir se o capital se há-de destruir a ele mesmo ou se há-de ser a classe trabalhadora a destruí-lo. Enquanto andar nesta indecisão, a extrema-esquerda nunca terá uma estratégia própria.

Na minha opinião, a actual crise resulta da conjugação de vários processos.

1) Um dos elementos da actual crise é o declínio dos Estados Unidos como potência económica. Este declínio manifesta-se de maneira flagrante no Iraque, onde os mecanismos estritamente económicos do imperialismo foram substituídos pelos mecanismos bélicos. Compare-se com a actuação dos capitalistas chineses, tanto privados como de Estado, que nos últimos anos têm conseguido uma tão grande quanto discreta penetração em África apenas pelo uso das armas económicas. O facto de os Estados Unidos não terem conseguido fazê-lo no Iraque é sintoma de uma decadência muito profunda.
Não disponho aqui de espaço para delinear, mesmo sinteticamente, os principais traços do declínio económico dos Estados Unidos, mas um dado parece-me bastante eloquente, ao sabermos que, em percentagem do Produto Interno Bruto, os investimentos norte-americanos em infra-estruturas materiais de comunicação e transporte atingem hoje menos de metade (2,4%) dos verificados na União Europeia (5%). Nos Estados Unidos não está a ocorrer apenas uma crise financeira, mas verificam-se problemas que afectam o âmago do processo produtivo.

2) Em íntima relação com o que acabei de apontar, outro dos elementos da crise é o reequilíbrio das potências mundiais. Habitualmente, entre 2/3 e 3/4 dos investimentos externos directos, que aqui se podem definir de maneira simplificada como os investimentos característicos das firmas transnacionais, têm circulado entre três pólos: a Europa, o conjunto Estados Unidos e Canadá, e o Japão. Contrariamente a uma convicção arreigada, as firmas transnacionais não exploram preferencialmente mão-de-obra barata e sim mão-de-obra qualificada, porque é ela a mais produtiva. O que os investimentos transnacionais procuram são as regiões de maior produtividade, onde a economia é desenvolvida e a força de trabalho é sofisticada. Fora daqueles três grandes pólos, o resto dos investimentos externos directos dirige-se sobretudo para a China, a Índia e o Brasil. A China já se afirmou como uma nova potência económica e o Brasil e a Índia estão em vias de sê-lo.

3) Este quadro torna-se muitíssimo mais complexo pelo facto de nas últimas décadas os países terem deixado de constituir verdadeiras unidades económicas e, portanto, os Estados nacionais e os respectivos governos terem perdido a primazia. O que caracteriza os fluxos transnacionais de capital é a capacidade de ultrapassarem todas e quaisquer barreiras alfandegárias, privando os governos das suas armas. Quem queira compreender o b-a-bá desta questão deve lembrar-se de que, quando a administração Reagan, preocupada com o carácter altamente concorrencial dos automóveis exportados pelo Japão, impôs um forte acréscimo das tarifas aduaneiras, as empresas japonesas pura e simplesmente investiram nos Estados Unidos e começaram a fabricar lá os seus automóveis, apressando mais ainda o declínio das companhias automobilísticas norte-americanas.
Com efeito, a maior parte do que as estatísticas continuam a apresentar como sendo fluxos comerciais entre economias nacionais ocorre no interior das firmas transnacionais. Já no final da década de 1980 o comércio entre sociedades e as suas filiais no estrangeiro era responsável por mais de metade do comércio total entre os países da OCDE. Nesta mesma data, 1/3 das exportações norte-americanas dirigia-se para empresas situadas no estrangeiro que eram propriedade de firmas sediadas nos Estados Unidos e outro 1/3 era constituído por bens que empresas estrangeiras com filiais nos Estados Unidos enviavam para os países onde tinham a sede; em sentido inverso, em 1986 cerca de 1/5 das importações dos Estados Unidos provinha de companhias de propriedade norte-americana localizadas no estrangeiro e cerca de 1/3 compunha-se de bens que companhias de propriedade estrangeira situadas nos Estados Unidos adquiriram aos países onde tinham a sede. Se adoptarmos uma visão global, e sempre no final da década de 1980, calcula-se que as vendas totais efectuadas pelas sociedades de propriedade norte-americana, tanto sedes como filiais, às sociedades de propriedade estrangeira teriam sido 5 vezes superiores ao valor convencionalmente atribuído às exportações dos Estados Unidos; ao mesmo tempo, as aquisições por sociedades estrangeiras teriam sido 3 vezes superiores às importações realizadas pelos Estados Unidos. E, nessa data, entre os 12 principais países da OCDE, 11 teriam vendido mais nos Estados Unidos através das filiais norte-americanas de transnacionais sediadas nesses países do que através de exportações. Numa situação em que só são tornadas públicas as estatísticas de base nacional, permanecendo confidenciais as estatísticas elaboradas pelas empresas, estes cálculos são muito difíceis e raros economistas ousam fazê-los, mas tudo indica que os valores verificados para a segunda metade da década de 1980 sejam hoje ainda mais elevados. Tanto assim que, quando agora se fala do carácter concorrencial dos produtos chineses é bom não esquecer que a maior parte do acréscimo das exportações chinesas se deve às filiais de firmas transnacionais implantadas na China.

4) Uma economia mundial em que as nações e os respectivos governos perderam a primazia e em que as companhias transnacionais são geridas por uma rede de pólos interligados e sempre mutáveis não pode mais depender das moedas nacionais.
Em 1970, enquanto as instituições oficiais norte-americanas dispunham no estrangeiro de cerca de 24 milhares de milhões de dólares, os particulares dispunham já de aproximadamente 22 milhares de milhões, e o desequilíbrio continuou a agravar-se de então em diante. Isto significa que, à força de emitir a moeda mundial, a administração norte-americana acabara por perder o controlo sobre essa moeda. Foi este facto fundamental que ditou o desmantelamento dos acordos de Bretton Woods, reconhecido pelo Smithsonian Agreement no final de 1971, uma das datas mais importantes do longo processo de reorganização económica que continua ainda hoje por completar. É impossível os bancos centrais controlarem as moedas nacionais com o actual volume de transacções financeiras, que ultrapassa muito qualquer montante de reservas bancárias. Nenhum banco central pode sustentar a sua moeda se houver movimentos sistemáticos contra essa moeda.

5) É nesta perspectiva que devemos compreender a remodelação do crédito e dos instrumentos financeiros que tem ocorrido nos últimos anos. Fala-se agora muito de “capital especulativo”, aparentemente ignorando, ou esquecendo, que esse era um dos conceitos típicos da extrema-direita fascista ou fascizante durante a década de 1930. A esquerda, com toda a candura, reproduz essa terminologia e, o que é pior, essas ideias. Não há contraposição entre produção e crédito. A função do crédito é agilizar a produção, e quando ela atinge a complexidade actual os mecanismos financeiros não podem igualmente deixar de ser muito complexos e diversificados. Numas circunstâncias em que o quadro nacional das economias foi ultrapassado e em que, de qualquer modo, a emissão da moeda clássica é perfeitamente insuficiente para as necessidades, os bancos e as demais instituições financeiras vêem-se a todo o momento obigados a criar novas formas de dinheiro bancário.
É claro que existem especuladores nos meios financeiros, mas eles existem sempre, tal como existem falsificadores na indústria. Não é por aí que podemos compreender o funcionamento dos mecanismos económicos. Seria bom que de vez em quando os marxistas seguissem o exemplo de Marx, que em O Capital procedeu à crítica do capitalismo não através das suas anomalias mas observando exclusivamente o seu funcionamento normal.

6) Os mecanismos de regulação económica estão a mostrar-se inadequados às necessidades actuais. Com o declínio das nações enquanto quadro económico e, portanto, o declínio dos governos nacionais, as instituições e os mecanismos interestatais ficaram também postos em causa. O grande capital transnacional ultrapassou tudo isto no seu desenvolvimento. Por outro lado, porém, as grandes companhias transnacionais, se se têm mostrado mais ou menos capazes de se regular a si mesmas, não parece que tenham conseguido regular o conjunto do sistema. A alternativa mais viável afigura-se-me ser a de uma nova conjugação entre as grandes empresas transnacionais e novos órgãos supranacionais saídos das instituições internacionais existentes. Tratar-se-ia de fazer à escala mundial o que a China faz já no âmbito da sua economia, conjugando o capitalismo de Estado e as grandes empresas privadas num único mecanismo de tomada de decisões, consagrado pela admissão dos capitalistas privados como membros de um Partido que continua, evidentemente, a chamar-se Comunista.

7) A grande diferença entre este hipotético sistema de regulação que aqui delineei, ou qualquer outro que se lhe assemelhe, e o keynesianismo implantado na sequência da segunda guerra mundial diz respeito à integração dos trabalhadores. No modelo keynesiano, tal como o aplicaram as social-democracias e as democracias-cristãs, a taxa de crescimento económico, o aumento da emissão monetária e a taxa de aumento dos salários resultavam de acordos triangulares estabelecidos entre as confederações patronais, os governos e as centrais sindicais. Porém, para que os sindicatos pudessem cumprir essa função de reguladores do mercado de trabalho era necessário que neles estivesse filiada uma boa percentagem da mão-de-obra. Ora, os sindicatos não mais se podem considerar representantes dos trabalhadores, numa situação em que as taxas de sindicalização caíram drasticamente.
Na Austrália, onde mais de 50% da força de trabalho estava sindicalizada na década de 1970, em 2001 a percentagem reduzia-se a 25%. A evolução foi praticamente idêntica no Reino Unido, passando de um pouco mais de 50% da população activa organizada nos sindicatos na segunda metade da década de 1970 para 30% em 2006. Também na Itália, onde em 1980 quase 50% dos trabalhadores estavam sindicalizados, agora a taxa é inferior a 40%. Nos Estados Unidos, 34% da força de trabalho estava sindicalizada em 1965 e só 12% em 2006. Na Alemanha a taxa de sindicalização manteve-se superior a 30% da força de trabalho até meados da década de 1990, mas em 2003 caíra para 20%. Finalmente, na França, onde os sindicatos organizavam 20% da população activa na década de 1970, em 2006 a taxa era inferior a 9%. São muito raros os países que escapam a esta tendência. Os sindicatos hoje não subsistem enquanto organizadores do mercado de trabalho, função que se tornaram incapazes de desempenhar, mas enquanto detentores de capital. São complexos e variados os mecanismos que têm permitido aos sindicatos apropriar-se, de direito ou de facto, de avultados pacotes de acções, e a questão extravasa os limites deste artigo. Basta aqui dizer que em 2003, dos 17 triliões de dólares a que montavam então os fundos de pensão e fundos mútuos activos em todo o mundo, a administração de 12 triliões ou tinha uma participação sindical directa ou um envolvimento de outros representantes dos assalariados.
Nestas circunstâncias, conseguirão os capitalistas controlar os trabalhadores só mediante a disciplina de empresa e o colossal sistema de fiscalização electrónica instalado fora das empresas? É a esta questão crucial que a luta de classes há-de responder nos próximos anos. Dela depende a evolução da crise e a maneira como será resolvida.


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