Os bons costumes e os maus usos

João Bernardo — 10 Outubro 2008

É intrigante que a sociedade francesa, caracterizada desde há vários séculos por uma certa liberdade de costumes, coexista com atitudes de puritanismo tão cómicas como retrógradas. São conhecidas as dificuldades que As Flores do Mal e Madame Bovary tiveram com a justiça, para me limitar a estas duas incontestáveis obras-primas, embora seja muito menos referido o facto de terem sido as autoridades francesas − tanto quanto sei − a inaugurar a prática de condenar artistas dissidentes a internamento psiquiátrico.

Foi Daumier quem estreou a moda, logo no começo do reinado de Luís-Filipe. E se alguém argumentar que estes casos, e uma longa série de outros que não é aqui lugar para desfiar, ocorreram no século XIX, pode recordar-se que bem mais perto de nós, em 1972, o cantor Michel Polnareff foi posto em tribunal por ter aparecido de nádegas à mostra no cartaz que anunciava o seu próximo concerto e, sem temer o ridículo, o juiz condenou-o a uma indemnização à razão de 10 francos por cartaz, o que, sendo 6.000 os cartazes, não foi uma brincadeira. O mal, evidentemente, não estava em ter nádegas, mas em mostrar que se tinham.

Tudo isto vem a propósito de um acontecimento recente. Philippe Pissier, um artista interessado numa modalidade estética que consiste em enviar obras de arte pelo correio sob a forma de postal fotográfico, está a passar por fortes dissabores pelo facto de uma sua obra apresentar, imagine-se, dois seios nus. Parece que algum funcionário dos correios protestou ao ser exposto a uma visão tão perturbante, a administração dessa instituição accionou os devidos mecanismos, os tribunais moveram-se, a polícia fez uma busca em casa do artista e, de acordo com a moda que as polícias um pouco por todo o lado estão a seguir, apreendeu-lhe o computador, e Pissier está agora ameaçado de três anos de prisão e uma multa de 175.000 euros.

É certo que os quatro postais − eram só quatro − não se limitavam a mostrar os seios, mas havia molas de roupa nos bicos de cada um, o que conota a obra com um estilo de sadomasoquismo ao alcance de qualquer dona de casa. Parecem-me costumes por demais brandos se comparados, por exemplo, com a imagem da lâmina que corta um olho associada às nuvens que atravessam a lua no celebérrimo filme de Buñuel e Dali, um dos incontroversos clássicos do cinema. Argumentam as autoridades que os postais de Pissier podiam chocar a sensibilidade das crianças, embora os correios franceses não explorem mão-de-obra de menores e os destinatários da obra fossem todos eles adultos. Inocentes criancinhas, que servem para tudo! Talvez um dia surja uma lei para proteger os adultos das perversidades infantis.

Entretanto as crianças vão sendo expostas à miséria, a dos outros quando não a delas mesmas, mas como não se trata de obra estética a censura não intervém neste domínio.


Comentários dos leitores

Renato 12/10/2008, 13:15

É exemplo da grande hipocrisia da sociedade em que vivemos: a preocupação moralista para com uns é o complemento do cinismo para com outros.


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