A vida como pena

Rui Pereira — 8 Agosto 2008

libertacao-de-inaki-de-juana-chaos.jpgA saída do ex-membro da ETA Iñaki de Juana Chaos no princípio de Agosto, ao cabo de 21 anos de encarceramento, foi antecedida e sucedida por uma campanha político-mediática sem precedentes, nem nos tempos mais agudos do «tratamento de choque» imposto ao problema nacional basco pelo ex-primeiro ministro Aznar e pelo seu partido, o Partido Popular, de direita.

O actual primeiro-ministro, o socialista José Luís Zapatero, não hesitou em comentar para as televisões a libertação de um preso que acabava de cumprir o tempo limite de prisão a que os tribunais especiais espanhóis, ditos «anti-terroristas», o haviam condenado. E não lhe ocorreu melhor do que (numa declaração que chegou às televisões portuguesas) dizer que, como cidadão e como primeiro-ministro, a saída de Inãki de Juana lhe causava «desprezo», embora o Governo tivesse que «cumprir a lei».

«Não gostamos que De Juana esteja na rua, repugna-nos. Mas somos melhores porque acatamos escrupulosamente a lei e não toleraremos o menor sinal de menosprezo às vítimas», disse, por seu lado, a número dois do Governo, María Teresa Fernández de la Vega, que acrescentou: «fazemos tudo o que temos ao nosso alcance para que [os ex-presos bascos] estejam cada vez mais sós e sejam cada vez mais rechaçados».

Das medidas de segurança…

Iñaki de Juana Chaos foi capturado em 1987, acusado de integrar o Comando Madrid da ETA na primeira metade dos anos 80, e de participação, entre outras acções da organização armada, num atentado contra um veículo militar em que perderam a vida 13 membros das forças de segurança do Estado espanhol.

O seu percurso prisional foi marcado pelo castigo e pela punição adicionais à pena nominal de três mil anos de cadeia. Tornado um símbolo da expedição punitiva que o Governo espanhol empreendeu, sob a designação de «império da lei», contra o independentismo basco, Iñaki de Juana foi re-condenado a uma nova pena de prisão quando chegava ao limite da sua condenação inicial. O motivo encontrado foi um conjunto de artigos que, da prisão, escreveu para o jornal independentista basco Gara. Nos textos, o preso defendia que na ausência de uma solução política para o conflito, sistematicamente impedida pelo Estado espanhol, a via armada continuava vigente. A tese foi considerada «apologia e apelo ao terrorismo» e o seu autor, por delito de opinião, viu estendida em vários anos mais a sua pena.

Em todo o caso, as leis que permitem a saída de presos da geração de Iñaki de Juana Chaos já foram alteradas. A actual «legislação anti-terrorista» prevê penas de 40 anos de prisão efectiva e integral, isto é, sem direito a liberdade condicional, ou a saída a cabo de 4/5 da pena. A lei foi proposta no tempo de Aznar, em 2002, e aprovada com os votos do Partido Socialista. Na prática, trata-se da aplicação, à cabeça, de medidas de segurança que impedem, sob o rótulo de «terrorismo» e independentemente das práticas do preso, a sua libertação antes das quatro décadas.

Angel Acebes, o ministro do Interior do PP (o mesmo que viria atribuir à ETA os atentados islamitas em Madrid em 2003), explicou na altura como foi estipulada a medida dessa pena: «Estamos a prendê-los por volta dos 23, 24 anos. Assim, calculámos que saindo após 40 anos, terão 63, 64, isto é, já não terão hipóteses de se juntarem então de novo à ETA».

… à vida como pena

Agora, cumpre aos socialistas fazer a segunda parte. Garantir que, antes ou depois de se terem tornado sexagenários, os militantes independentistas, armados ou não, vejam as suas condenações prolongadas até ao fim das suas vidas.

campanha-contra-de-juana.jpgA campanha mediática contra Iñaki de Juana tinha por base o facto de o ex-militante da ETA ir viver para um apartamento do bairro de Amara na sua San Sebastian natal, comprado pela sua mulher. No bairro «habitam familiares de vítimas da ETA e pessoas ameaçadas» pela organização armada. Pelo que, segundo a campanha de ódio desencadeada, as vítimas ver-se-iam perante o ultraje adicional de terem de «conviver com o seu carrasco», nos termos em que a coisa foi colocada, num país repleto de vítimas de um e de outro lado.

Impulsionada a partir do jornal direitista El Mundo, a campanha foi retomada pelos comentadores e fazedores de opinião. Alastrou aos editoriais, aos políticos, aos membros do Governo e aos juízes. Um deles, o conhecido Baltazar Garzón, diria que com a legislação vigente, é preciso aceitar a saída da prisão do terrorista “mesmo sem gostar”. A possível modificação da lei “para evitar que se repitam situações similares”, será, segundo o juiz, “uma obrigação e uma missão do Parlamento espanhol”.

Magistratura, partidos, parlamento, Ministério Público, pseudo-associações de vítimas industriadas e financiadas governamentalmente, jornais, comentadores, toda a maquinaria espectacular em uníssono encarregava-se de criar o pano de fundo para que a secretária-geral do PP, María Dolores de Cospedal, revelasse as conversações em curso com o PSOE para aprovar modificações legislativas no sentido de que os ex-presos independentistas bascos «não possam viver próximos de vítimas da ETA», bem como para que se persigam os seus patrimónios e das suas famílias. Perante a libertação de um “criminoso, chantagista e assassino” como De Juana Chaos, “mudar leis” é obrigatório, concluiu.

Democracia e cinismo

Desenrolar-se-ão, assim, investigações patrimoniais contra familiares de presos, bem como se imporá aos libertados um lugar de residência. Degredo e ostracismo juntar-se-ão ao já vasto arsenal punitivo da Espanha «democrática». Em 2006, o então ministro da Justiça Juan Fernando López Aguilar enunciava o problema nos seus termos próprios: «O que se coloca, no fundo, é uma questão que tem a ver com os princípios do Estado de Direito. Devem a sociedade em geral e as autoridades do Estado, em particular, conformar-se com que o delinquente cumpra a condenação que lhe foi imposta ou há casos em que é necessário forçar a mão e recorrer ao que for preciso para prolongar o seu castigo ainda que isso obrigue a construir imputações?».

Democraticamente, a democracia espanhola, através da campanha contra De Juana, deu uma resposta eloquente. Em Portugal, a ditadura chamava-lhes medidas de segurança. Agora, as democracias, sem nunca o dizerem, estabelecem formas de prisão quase-perpétua intra-muros e, prolongam-nas sob formas de degredo extra-muros.

Como explicava com inigualável cinismo o ministro espanhol do Interior, Rubalcaba, «a melhor forma de passar uma longa temporada na cadeia é ingressar na ETA». Confirma-o Joxe Mari Sagardui, que acaba de cumprir 28 anos de prisão, batendo na democrática Espanha a triste contabilidade carcerária, sob o apartheid sul-africano, de outro ex-terrorista: Nelson Mandela.


Comentários dos leitores

semfim 10/8/2008, 12:29

Pois, o Kosovo é que é bom (bem,tem a maior base democrática militar dos EUA na Europa). Flandres, Escócia, Ossétia, Abkhasia, Porto Rico já é mau. Para não falar da PALESTINA!!!!

semfim 10/8/2008, 12:31

Para quando o juiz democrático Garzón, saído da classe pobre (explorada) não leva a tribunal o maior terrorista do mundo e arredores: Bush, Blair e sus criaditos, Aznar e Cherne?

Jabiero 21/8/2008, 3:41

Desde Euskal Herria, gracias por tu trabajo. Me encantó tu libro "Las palabras indeseables".


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