Os limites da democracia

João Bernardo — 19 Julho 2008

haackestargazer.JPGCom frequência se ouve dizer em alguma extrema-esquerda que é preciso aproveitar as possibilidades da democracia capitalista. Por meu lado, parece-me mais útil forçar a democracia a mostrar os seus limites. Vou contar três histórias, que servem como parábolas.

Quando o generalíssimo Franco decidiu apoiar-se na Opus Dei para proceder a uma modernização conservadora e tecnocrática do fascismo, tomou certas medidas de abertura política e de liberalização da cultura. Neste contexto Luis Buñuel foi convidado em 1960 para realizar um filme em Espanha. Durante a guerra civil Buñuel apoiara o lado republicano e estivera próximo dos anarquistas, e mais tarde exilou-se no México onde fez filmes de altíssima qualidade mas com orçamentos reduzidos. Como se tratava de um dos maiores cineastas de sempre, os orientadores da nova política cultural do franquismo calcularam que, com o seu génio e com a verba posta à sua disposição, Buñuel ganhasse um conceituado prémio, a Palma de Ouro do festival de Cannes, e que este prestígio beneficiasse o fascismo espanhol. Buñuel aceitou, perante a enorme indignação da esquerda, e realizou a Viridiana, que com efeito obteve em 1961 o galardão esperado, mas… foi proibido em Espanha, além de ser censurado pela Santa Sé. É que nesse filme Buñuel não se limitou a criticar os aspectos mais retrógrados da sociedade franquista e criticou igualmente, na figura do primo de Viridiana, a tecnocracia modernizadora.

A segunda história passou-se com um dos mais notáveis artistas plásticos contemporâneos, Hans Haacke, que tem usado o conceptualismo com objectivos de crítica social e política. Não posso aqui alongar-me sobre o que é o conceptualismo, mas o importante é que em 1971 Haacke foi convidado a realizar uma exposição individual no Museu Guggenheim de Nova Iorque, um dos mais consagrados lugares da arte moderna, e aceitou. Da vanguarda artística de esquerda ergueu-se um coro de protestos. Mas como Haacke insistisse em incluir na exposição uma obra formada por documentação relativa às especulações imobiliárias dos curadores do Museu, a exposição acabou por ser cancelada, com repercussões que afectaram aliás a direcção da instituição.

A terceira história ocorreu num plano cultural aparentemente mais modesto, mas as implicações foram as mesmas. Uma cantora de variedades francesa, Juliette Gréco, excelente intérprete de belíssimos poemas, foi convidada a cantar no Baile da Polícia, não me recordo em que ano, mas estou certo de que foi na primeira metade da década de 1970. Também aqui a esquerda ficou muito zangada. Uma artista que estivera associada aos inícios do existencialismo e que sempre fustigara a sociedade burguesa aceitava abrilhantar o baile dos agentes da repressão. Só que Juliette Gréco cantou para os senhores guardas mais as esposas canções antimilitaristas e pacifistas, para grande cólera dos circunstantes, e a festa terminou na maior das confusões.

A conclusão a que eu chego é aquela a que o leitor certamente já chegou. A democracia demonstra uma grande abertura, com uma condição apenas − a de serem aceites os limites desta abertura. Quem os aceitar pode fazer e dizer tudo, isto é, tudo o que não extravase tais limites.

Há ainda uma segunda conclusão, talvez menos óbvia, mas que me parece mais importante. Clamar contra os limites da democracia é relativamente fácil, exige só coragem política e conhecimento da cartilha. Bastante mais difícil é, a partir de dentro, obrigar a democracia a desvendar publicamente os seus limites. Isto requer, além de coragem, a capacidade de conduzir a política como uma pedagogia, de transformá-la numa lição prática, o que é difícil, porque de cada vez se torna necessário inovar.


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