Entender o declínio do imperialismo EUA

Editor / Richard D. Wolff — 19 Novembro 2020

À medida que o centro político implode, os capitalistas dos EUA favorecem a direita

A vitória de Joe Biden nas presidenciais norte-americanas, desejada e festejada por quase toda a União Europeia, corre o risco de esconder um facto nada desprezável: Donald Trump conquistou em 2020 mais 10,5 milhões de votos do que 2016. Dos cerca de 24 milhões de votantes a mais que foram às urnas em 2020 (na que foi considerada a maior votação de sempre das presidenciais norte-americanas), pouco menos de metade optou por Trump. Isto mostra que a ascensão de Trump (e sobretudo do trumpismo) não foi fruto do acaso, e comprova — para lá da personagem e do seu desconcerto — que a política por ele preconizada e praticada nos últimos quatro anos tem uma larguíssima base de apoio entre a população norte-americana.

Temos tentado mostrar nestas páginas que o vendaval que agita a sociedade norte-americana não é mero produto de jogos partidários ou pessoais. É sim reflexo da senilidade do capitalismo mundial e, em particular, da decadência do imperialismo dos EUA. Sendo o imperialismo norte-americano a cabeça do imperialismo mundial, cuja teia se estabeleceu nos últimos 75 anos, a sua decadência arrastará abalos inevitáveis em todo o edifício capitalista mundial e nos imperialismos dependentes que se têm acolhido debaixo da sua asa, como é o caso da UE.

Compreender essa decadência e a dissolução das instituições que a acompanham — nomeadamente da democracia burguesa — é crucial para entender, não apenas os riscos, mas também as perspectivas novas que se abrem aos povos e aos trabalhadores do mundo inteiro.

O texto que publicamos (com pequena adaptação), de autor norte-americano, tem, a nosso ver, o mérito de procurar responder a questões decisivas, que se colocam muito para além do folclore eleitoral e partidário: Que forças profundas actuam na sociedade norte-americana a ponto de a conduzir no sentido de um regime de tipo fascista? Que natureza reveste esse fascismo? Que relação tem este curso político com a crise do capitalismo e do imperialismo? Pode a decantada vitória de Biden impedir esse curso?

 

A VIA DOS EUA PARA O FASCISMO

Richard D. Wolff (*)

A convenção do Partido Republicano [realizada em Setembro] parecia um desfile dos sinais, não muito subtis, de fascismo incipiente observáveis nos últimos anos. Vimos nacionalismo extremo, imigrantes e estrangeiros em geral tratados como bodes expiatórios, supremacia branca, governo de “homem forte”  (narcisista), políticas externas agressivas e provocações histéricas.

Esses sinais mostram como o aprofundamento da crise do capitalismo mina tanto o centro-esquerda (democrata) como o centro-direita (republicano) e desloca a política mais para a direita e mais para a esquerda. Trump representa o anti-centro-direita, Bernie Sanders o anti-centro-esquerda. A maioria dos capitalistas não deseja nem um nem outro; o centro funcionou muito bem para eles nos últimos 75 anos. Mas à medida que esse centro político implode, os capitalistas dos EUA favorecem a direita em vez da esquerda. Eles vêem a diferença entre fascismo e socialismo muito claramente, e não se deixam enganar pelos esforços interesseiros do velho centro em ruínas para colocar socialismo e fascismo no mesmo pé.

O fascismo pode realmente acontecer aqui, mas de uma maneira própria. O fascismo, como todos os outros sistemas, tem formas variadas. Nos fascismos do século XX que tomaram forma na Itália, Alemanha, Japão e Espanha — para dar alguns exemplos importantes — o mesmo sistema básico interagiu de maneira diferente com a história e as condições particulares de cada país. O fascismo para onde o capitalismo dos EUA está a  dirigir-se agora também exibirá características próprias.

O fascismo que toma forma nos EUA não é essencialmente o teatro político brutal que os aspirantes a fascistas de hoje oferecem. O namoro do regime de Trump com os supremacistas brancos e outros nacionalistas extremistas, o seu virulento ataque aos imigrantes, latino-americanos e afro-americanos e o seu incentivo à repressão policial são muitas vezes contraproducentes. Esses símbolos, por serem suficientemente semelhantes a muitos dos horrores do fascismo do século XX, tornam-se facilmente reconhecidos como perigosos. Hoje, os Estados Unidos movem-se de forma mais silenciosa e eficaz em direcção ao fascismo através da rápida evolução do seu sistema de crédito. É altura de denunciar o crédito como um caminho para o fascismo.

A economia capitalista de hoje, a cavalo da crise, é mais dependente do crédito do que em qualquer momento da história do sistema. Mais do que nunca, o crédito sustenta o poder de compra dos consumidores e dos programas de governo. Os capitalistas dependem desse poder de compra. As empresas agora suportam rotineiramente mais dívidas directas do que em qualquer momento da história do país. Empresas zombis — aquelas cujos lucros já não são suficientes para pagar as dívidas directas — figuram agora de forma considerável no capitalismo dos EUA.

Outrora, a maioria das entidades privadas — famílias ricas, bancos, seguradoras e fundos de pensões — eram os principais credores das empresas. Compravam e detinham as acções das empresas e títulos de dívida. Agora, esses credores privados vendem cada vez mais essas suas acções à Reserva Federal [Fed, banco central dos EUA]. Isso acontece quando os empréstimos contraídos pelas empresas são agrupados em títulos e vendidos à Fed como activos de garantia. Mais recentemente, a Fed empreendeu a compra, no mercado, de fundos negociados em bolsa compostos por acções de empresas e a compra de acções de empresas directamente aos seus emissores privados. Também disponibilizou “facilidades de crédito” directamente a empresas, entidades isentas de impostos e municípios.

Como credor de último (e crescente) recurso, o Estado torna-se cada vez mais a base social do crédito. A Reserva Federal está, portanto, a reunir os meios para controlar directamente a alocação de crédito num capitalismo viciado em crédito, profundamente ameaçado pela sua instabilidade cíclica inerente, por uma grande pandemia viral, por problemas sociais internos acumulados e por uma crescente competição e isolamento internacionais.

Negócios importantes e relacionamentos íntimos entre as principais corporações não financeiras e os seus bancos já chamaram a atenção especial de políticos carreiristas, estudantes do capitalismo e também dos críticos do capitalismo. O “capitalismo financeiro” tornou-se um novo conceito importante. À medida que o crédito proliferou em todos os aspectos do capitalismo e se tornou cada vez mais central para o seu funcionamento, outro novo termo surgiu: “financeirização”. Antes principalmente privado, o crédito já não o é.

Talvez devêssemos designar esta última fase de “financeirização estatal”. O banco central do Estado tornou-se cada vez mais importante no controle das condições e vias de crédito no capitalismo. Isso tem-se tornado cada vez mais evidente à medida que o capitalismo oscilou da crise das dot-com de 2000 [bolha das empresas com base na Internet] para a crise das hipotecas subprime de 2008 e desde então para cá. A provisão de crédito pela Reserva Federal é agora crucial para a passagem do capitalismo dos EUA pela megacrise  COVID-19 e para lá disso. Ela é crucial para a própria sobrevivência do capitalismo.

A Reserva Federal concede agora crédito em dimensões historicamente sem precedentes. Enquanto mantêm o seu sistema a funcionar, os capitalistas, a Reserva Federal e o resto do governo vão apalpando o caminho para um fascismo ao estilo dos EUA. Passo a passo, eles reconhecem a sua dependência mútua e medem as possibilidades de crédito como cimento — e talvez o único cimento — para manter uma aliança entre eles. Sim, eles preocupam-se com a montanha de dinheiro recém-criada e como ela pode, depois de inflacionar o mercado de acções, inflacionar e fazer rebentar outros mercados.

Mas essa preocupação foi eclipsada pela urgência de salvar um capitalismo que hoje cambaleia gravemente. Capitalistas que antes lamentavam os crescentes défices do governo e a explosão das dívidas nacionais estão na sua maioria silenciosos. Eles sabem que a sobrevivência do capitalismo exige enormes dívidas governamentais, empresariais e domésticas e a sua monetarização pela Reserva Federal. O sistema vai instruindo as suas elites sobre a necessidade presente de transição do capitalismo [liberal] para o fascismo. Só que, para muitos dos envolvidos, essa transição ainda não é totalmente consciente ou visível.

Fascismo é o que acontece no capitalismo quando os patrões sentem que (1) os problemas acumulados do seu sistema excedem a capacidade de os resolver e (2) uma forte intervenção estatal (muitas vezes ditatorial) é necessária para que o sistema capitalista sobreviva. O fascismo também pode ser a resposta do capitalismo quando as vítimas das desigualdades (económicas, políticas e culturais) e das instabilidades (ciclos de negócios) do capitalismo não as tolerarão mais. Se e quando os críticos do capitalismo — especialmente os socialistas — construírem uma consciência de massa suficiente e mobilizarem organizações de massa que ameacem o capitalismo com grandes reformas ou com a revolução, os capitalistas podem buscar uma aliança com uma poderosa contra-força política para construir um fascismo.

Essa contra-força pode ser um político ou um partido político que captura a imaginação das massas vítimas do capitalismo, mas culpa, não o capitalismo, e sim os imigrantes ou minorias étnicas ou religiosas. Se tais políticos ou partidos atacarem e se opuserem ao socialismo e oferecerem aos capitalistas uma base de massa de que eles precisam, mas que lhes falta, os capitalistas apoiá-los-ão. O fascismo — uma fusão de capitalistas privados e um estado que reforça seu sistema — terá chegado assim que um partido fascista adquirir o poder do estado. Onde os socialistas advogam a mudança do sistema, os fascistas advogam o nacionalismo, entendido como uma fusão do capitalismo privado e do aparato estatal para exaltar algum ideal nacional.

O fascismo funde o capitalismo privado e o Estado. O poder político, então, impõe as regras básicas do capitalismo: o domínio económico dos principais accionistas e seus principais directores e gerentes. No fascismo, esse domínio estende-se desde a esfera económica até à esfera política e cultural da vida social. Vai muito além da norma vigente em sociedades não fascistas baseadas em economias capitalistas. Por exemplo, os sindicatos são suprimidos ou convertidos em agências estatais. Toda a actividade laboral autónoma é proibida. A educação pública é reestruturada para servir e alimentar directamente o emprego.

Políticas monetárias, taxas de câmbio e balanças comerciais são administradas para atingir objectivos nacionalistas. As instituições culturais são reconfiguradas e reorganizadas para celebrar o fascismo. Nas histórias de alguns partidos fascistas, as críticas socialistas ao capitalismo foram inicialmente tomadas de empréstimo e repetidas para atrair adeptos entre as classes trabalhadoras. Mas, logo que esses partidos fizeram os seus acordos e alianças com os capitalistas, as iniciais críticas socialistas foram silenciadas e os seus autores expulsos ou pior.

Sob o fascismo, os principais accionistas e os conselhos de administração que eles elegem tomam todas as decisões-chave da empresa privada (o que produzir, como e com qual tecnologia e como usar as receitas ou lucros líquidos) como no capitalismo privado. No entanto, altos funcionários estatais exercem grande influência nas decisões dos directores ou podem juntar-se a eles para ocupar cargos nos conselhos. O estado fascista tipicamente silencia os oponentes do capitalismo, geralmente com o fundamento de que as suas actividades constituem traição. Da mesma forma, destrói os partidos políticos dos socialistas, comunistas e outros críticos do capitalismo. Por sua vez, os patrões louvam e financiam o partido fascista e o Estado que ele dirige.

A passagem do capitalismo dos EUA de um sistema privado para um sistema estatal de criação de crédito é agora vista como necessária por ambos os parceiros que o constituem: os capitalistas privados, por um lado, e os círculos políticos de topo em ambos os principais partidos, por outro, estão assim a fundir-se num tipo particular de fascismo. A financeirização estatal facilita essa fusão. O facto de alguns dos parceiros discordarem de Trump e das suas manipulações tradicionais de símbolos fascistas não muda a transição para o fascismo em curso, com o consentimento dos ditos parceiros.

———

(*) Richard D. Wolff é um economista marxista, professor na Universidade de Massachusetts, Amherst, e na New School University, em Nova York. O seu programa semanal Actualidade económica é distribuído por mais de 100 estações de rádio e chega a 55 milhões de receptores de TV via Free Speech TV. Livros recentes: A doença é o sistema (2020), Entender o socialismo (2019) e Entender o marxismo (2018).


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalves 20/11/2020, 15:10

Os arautos das desgraças não merecem comentários, É esta a herança dos herdeiros do relatório "secreto" do 20° Congresso do contra-revolucionário Kroutchev.

Leonel Lopes Clérigo 25/11/2020, 16:48

MAKE AMERICA GREAT AGAIN

1 - Do fraco entendimento que tenho da Sociedade Estadunidense, julgo que o Presidente TRUMP - mais o seu PROJECTO POLÍTICO - não caíram do céu...ou do inferno, conforme se preferir. E como os USA são um dos Países Capitalistas/Imperialistas - por sinal, o "mais importante (por enquanto) do Planeta" - a única maneira de se entenderem as suas recentes "convulsões sociais" - melhor seria dizer "contradições" - que se fizeram presentes nas ruas de muitas das suas cidades, seria dispor duma "ANÁLISE de CLASSES" dos USA.
Desconhecendo isso, os textos publicados recentemente pelo MV - do Workers World e de Richard D. Wolff - são então preciosa ajuda na clarificação de alguns aspectos do panorama actual da LUTA de CLASSES nos USA, permitindo um "comentário" que não seja inteiramente "desmiolado".

2 - Para já, há que registar e em primeiro lugar, que o grupo restrito das Nações Imperialistas encontram-se hoje numa "encruzilhada": não só o Modo de Produção Capitalista no seu conjunto, parece ter-se "esgotado" (a lengalenga da anárquica "dinâmica" da "iniciativa privada" regista já o seu afundamento como panaceia para as "dores do mundo"), como a maioria dos Povos já não suportam a exploração imperialista que vem impondo um "eterno" bloqueio ao seu DESENVOLVIMENTO económico-social.

3 - Em meu entender e sem aspirar a "treinador de bancada" dos assuntos internos de qualquer Nação soberana, há 2 PROJECTOS POLÍTICOS que se perfilam na "luta legal" dos USA.
Um deles, representado pela ala "hard" Republicana do Presidente Trump, parece "desejar" o REGRESSO ao poderio da "época de oiro" Imperialista dos USA: é o que se traduz nas "AMERICA FIRST" e "MAKE AMERICA GREAT AGAIN". No centro desse PROJECTO, está o "repor da força esmagadora económico-militar" que tudo "silencia" e se transforma em "obediência": é a velha "força ideológica" do "America way of life" que procura um "substituto" na "força do poder das armas".
Mas o que parece certo, é que os USA vêm-se hoje forçados a abandonar a sua "democrática" estratégia Imperial o que só por si torna visível - pela primeira vez - a necessidade da mera força MILITAR para assegurar o Império: quando a "palavra" só por si não chega entra a "força das armas". Por isso, há já quem fale - e com alguma perspicácia - na Nazi-fascização da Sociedade Estadunidense o que parece ser o destino dos imperialismos decadentes quando encurralados: a chegada das "ideologias de guerra".
O outro, que aglutina uma "pluralidade" de forças - sua "forma" parece ser a de uma FRENTE AMPLA de raiz DIMITROVIANA - sobretudo de forças Democráticas, Progressistas e de Esquerda (a INGLATERRA, curiosamente, tem algo de semelhante) - que se agregaram à volta de Biden/Obama, parece querer igualmente o regresso ao anterior poderio dos USA mas com outras "regras de jogo", mais "soft". Ou seja: as forças Progressistas e de Esquerda já viram que há momentos na História em que se impõe caminhar em "unidade", ampliando forças. Ou melhor: pôr a inteligência a funcionar no "concreto" e não no inatingível "celestial".

4 - Que se vai seguir?
Não tenho lá muita "vocação" para "bruxo". Mas julgo que a "Frente" que derrotou Trump tem muitas possibilidades em se manter e até consolidar o que "ganhou". Mas também não pode adormecer à sombra da "bananeira" - onde se escondem os "malandros" sempre prontos a passar "rasteiras" - correndo o risco de inoperância. Isso, é das coisas "fatais" que, com frequência, acontecem, fazendo "sair o tiro pela culatra".

UMA NOTA FINAL A DESPROPÓSITO
Hoje, é uma data fatídica na nossa História recente: o 25 de Novembro que vem somando já 45 anos de existência decrépita da Sociedade Lusa. Quando se olha de perto essas forças NOVEMBRISTAS/RENTISTAS e se aprecia seus resultados práticos podemos afirmar com segurança que "bem podem limpar as mãos à parede".
Ao menos, no incipiente ABRIL, falava-se de DESENVOLVIMENTO. Mas esse vem, há 45 anos - uma eternidade como a de Salazar - permanecendo no tinteiro...e nas algibeiras vazias.

(BOM PROVEITO - https://www.youtube.com/watch?v=r6uY7xpIfgQ)


Envie-nos o seu comentário

O seu email não será divulgado. Todos os campos são necessários.

< Voltar