Opressão das mulheres na agenda neofascista

Urbano de Campos — 8 Outubro 2020

Bandeira democrática do capitalismo tem sido uma mentira

O despertar dos novos fascismos vem acompanhado, em todos os continentes, de um recrudescimento de campanhas ideológicas, de propostas políticas, ou mesmo de medidas efectivas de opressão das mulheres. E quando as forças políticas que a tal se propõem são aceites placidamente como fazendo parte do corpo dos regimes democráticos, quando não parceiros de governos, então são as próprias democracias que expõem a sua precariedade, a sua decadência e a sua incapacidade para fazerem barreira ao reaccionarismo mais extremo.

Diante disto, é com satisfação que se ouvem as vozes que colocam o problema no seu devido pé: a luta pela igualdade das mulheres está no centro da luta anticapitalista, quer pela sua origem histórica, quer pelas condições sociais do mundo de hoje. Foi o que fez a filósofa e activista italiana/norte-americana Silvia Federici em conferência, via internet, promovido pela Culturgest em 7 de Outubro, de que daremos adiante algumas das notas salientes.

Antes disso… Os críticos burgueses que atacam, por exemplo, o fundamentalismo islâmico, ou a persistência de práticas primitivas (e brutais) em África, na Ásia ou na América Latina, gozam da margem que separa estes casos de atraso civilizacional da situação dos países mais desenvolvidos. Pregam moral à conta dessa diferença.

Mas isso tem o condão de desviar atenções do que se passa, dentro de casa, no mundo dito “civilizado”. Só por hipocrisia podem levantar as suas vozes, sabendo-se que nos próprios países desenvolvidos, nas democracias que se gabam de ser respeitadoras de direitos “universais”, não só se mantêm e cultivam as discriminações de género, como prosperam livremente forças reaccionárias que visam revogar direitos das mulheres juridicamente adquiridos e consagrar um supremacismo masculino.

As leis que descriminalizam o aborto estão debaixo de fogo nos EUA de Trump como no Brasil de Bolsonaro. Mas também as leis que criminalizam violações e agressões de género são um dos alvos a abater pelos fascistas do Vox em Espanha ou da Lega em Itália. Entre nós, o Chega de André Ventura atinge o cúmulo de albergar no seu órgão máximo, a Convenção, quem proponha (e quem aceite discutir) a castração das mulheres que alguma vez façam aborto… com o argumento canalha de poupar dinheiro ao Estado!

Mas mesmo sem estes extremos, as bases em que assenta a discriminação das mulheres eternizam as diferenças reais que a lei, por si, não consegue eliminar. As resistências à igualdade salarial das mulheres, o despedimento por gravidez, as discriminações nas promoções são praticados silenciosamente por toda a teia empresarial-patronal. A persistência de horários duplos casa-trabalho são consentidos pelas relações sociais e familiares e tidas por “normais”. A repetida absolvição ou atenuação dos casos de violência doméstica masculina são incentivo para a submissão de facto das mulheres, por baixo de leis que formalmente não a autorizam.

A desigualdade de que o capitalismo se alimenta não se resume à dos ricos e pobres, instruídos e incultos, proprietários e desapropriados, burgueses e proletários. Ela prolonga-se até ao seio da relação homem-mulher, que é o núcleo da conservação e reprodução da força de trabalho. A desigualdade (material, moral, comportamental) é, aí também, fundamental para assegurar que a metade masculina do mundo exerce, sobre a outra metade, a missão de força auxiliar na manutenção da ordem burguesa.

O neofascismo desempenha, nesta já longa fase de agonia do capitalismo, o papel de tropa de choque para reforçar a opressão das mulheres, começando pela tentativa de desfazer conquistas adquiridas, sob a capa de renovar “valores” e “tradições” que não são mais do que o regresso ao velho lamaçal da escravatura doméstica e do machismo mais abjecto.

Esta campanha é útil ao capitalismo em crise, já sem margem para agitar bandeiras de liberdade e de progresso “para todos”. A burguesia precisa de desenterrar o arsenal dos poderes morais arcaicos, das igrejas, dos censores de costumes. E convida os homens a que sejam eles a desempenhar o primeiro papel de guardiões da ordem social no que respeita às mulheres — uma espécie de polícia de proximidade, comprada com o privilégio de um emprego, de um salário melhorzinho e de uma posição social acima do zero.

“A família singular moderna”, refere Engels em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, “está fundada na aberta ou encapotada escravatura doméstica da mulher, e a sociedade moderna é uma massa cujas células são compostas exclusivamente por famílias singulares”. E alertava de seguida: “Na família, ele [o homem] é o burguês e a mulher representa o proletariado”.

É por isso que, ao quebrar este nexo, a libertação das mulheres da tutela masculina desempenha um papel chave no combate ao capitalismo. Não só pelo seu número (mais de metade da humanidade), a entrada das mulheres em pleno na luta social transformará tanto a capacidade como a própria natureza da luta pelo socialismo. Por isso é uma bandeira de sempre do movimento comunista. E, sempre que o não foi, ou por alguma razão se distorceu, os movimentos revolucionários retrocederam e morreram, perderam energia vital.

Silvia Federici, autora do livro Calibã e a Bruxa: as mulheres, o corpo e a acumulação original (ed. Orfeu Negro), inscreve a perseguição e a discriminação das mulheres a partir do século XV na formação do capitalismo. Desde então, as mulheres foram remetidas à condição de peça de manutenção e reprodução da força de trabalho, sem que esse seu labor fosse reconhecido, menos ainda remunerado. As “bruxas” perseguidas nos séculos XVI e XVII eram as mulheres recalcitrantes, ou que participavam nos movimentos de resistência. A libertação das mulheres e a sua luta pela igualdade assume assim um carácter anticapitalista, de abolição de toda a exploração humana, e é nessa condição que pode ter alcance universal. Sem isso, o feminismo poderá sempre ser tolerado pelas classes dominantes e absorvido pelo sistema capitalista.

Duas passagens de uma entrevista ao Público (7 Outubro 2020):

“ A viragem para o capitalismo foi um momento de profunda transformação social. A bruxa passou a incorporar tudo aquilo que as mulheres não deviam ser. Foi uma maneira de exercer controlo sobre os seus saberes e os seus corpos, sobre formas de sexualidade que não tinham como finalidade a procriação, sobre o sexo fora do casamento, sobre a sua independência laboral e legal. Hoje, muitas destas questões ou são criminalizadas ou são vistas com maus olhos. Do ponto de vista das mulheres, vemos como a bandeira democrática do capitalismo tem sido uma mentira.”

“Todas as crises representam uma encruzilhada. Estão a tentar usá-la [a crise actual] como uma forma de precarizar ainda mais o trabalho e as relações laborais, criar níveis altíssimos de desemprego, cortar nas políticas sociais, voltar a enfiar as mulheres em casa e sobrecarregá-las com mais trabalho doméstico não remunerado… Mas nós também podemos usá-la para criar alternativas. Esta encruzilhada está a gerar fendas no sistema. Permite que se veja que há muita coisa que não está a funcionar. As crises são um momento de verdade. Logo, um momento de possibilidades.”

E ainda partes de uma entrevista ao El País (25 Setembro 2019):

“Pode-se ser feminista e não estar contra o capitalismo? Não, não se pode. O feminismo não é uma escada para que a mulher melhore a sua posição, para que entre em Wall Street, não é um caminho para que encontre um lugar melhor dentro do capitalismo. Sou completamente contrária a esta ideia. O capitalismo cria continuamente hierarquias, formas diferentes de escravização e desigualdades. Então, não se pode pensar que sobre esta base se possa melhorar a vida da maioria das mulheres, nem dos homens. O feminismo não é somente melhorar a situação das mulheres, é criar um mundo sem desigualdade, sem a exploração do trabalho humano que, no caso das mulheres, se transforma numa dupla exploração.”

“A imprensa ocupou-se muito delas [das mulheres do movimento MeToo], mas as feministas estão há anos e anos a denunciar o assédio sexual, sobretudo em relação ao local de trabalho. Agora a imprensa descobre isso, porque são mulheres de Hollywood. Mas o assédio sexual é estrutural na relação entre homens e mulheres na sociedade capitalista. Isto continua hoje, embora a mulher tenha tido mais acesso ao trabalho assalariado.”

“Na sociedade capitalista, as mulheres sempre tiveram um acesso muito frágil ao sustento, sempre precisaram de vender o seu corpo. Não compreendo a postura das feministas que isolam a prostituição como uma coisa particularmente degradante, e não vêem as milhares de formas de degradação às quais as mulheres estão sujeitas. Não entendo, parece-me que penaliza sobretudo as mais pobres, que são as que mais necessitam de recorrer à prostituição. Por isso digo que nesta sociedade em que tudo se vende é pior vender o cérebro, a integridade moral e intelectual, não só que uma mulher venda a vagina.”

“Por que não se quer ver tudo isto? Se sou abolicionista, sou-o com todas as formas de exploração do trabalho humano. Este é o objectivo para mim — que não nos devemos vender de maneira nenhuma, que se pode viver numa sociedade na qual a venda do nosso corpo, coração, cérebro ou vagina não seja necessária.”


Comentários dos leitores

M. Teresa Alves da Silva 9/10/2020, 15:44

O artigo da autoria de UC bem como os extractos das entrevistas de Sílvia F. coloca no verdadeiro sentido/significado o movimento feminista no mundo actual, como um conjunto de movimentos políticos, sociais , e ideológicos , com base em filosofia que tem por base, a luta e a consagração de direitos iguais no mundo da instrução básica e formação, do trabalho e na vida familiar e social , por meio do empodaramento da mulher e libertação de práticas patriarcais ,com base em "normas" de género.Independentemente da cultura , tradições, cor de pele e religião

A história do movimento feminista é antiga , parece ter surgido no enquadramento dos movimentos sociais após a Revolução Francesa, e foi evoluindo e tem vindo a ganhar consistência teórica ate aos nossos dias e algumas conquistas foram concretizadas.No entanto, na sociedade actual , todos os dias somos confrontados com noticias de violência doméstica, assédio sexual e estupro que foram enquadrados e julgados com a "benevolência" de uma justiça reaccionária e retrograda.

Em termos de opinião publica , o feminismo é muito frequentemente confundido com femismo, e como tal repudiado o acesso a informação ou contacto com questões feministas, muitas mulheres , que embora sentindo na" pele" a descriminação de género, mas que se resignam por mal informadas e socialmente isoladas.

O femismo , não sei se poderá chamar movimento , mas pelo menos uma atitude colectiva de mulheres que constitui o oposto ao feminismo. É um atitude comportamental de grupo , baseada na superioridade feminina sobre o género masculino, constituindo o oposto ao machismo. Baseado no preconceito do género masculino, que enquadram atitudes/acções discriminatórias , reaccionárias e divisórias da sociedade

afonsomanuelgoncalves 9/10/2020, 16:34

Com a ascensão de forças nitidamente fascistas em certos países da Europa e com o apoio popular subsequente a democracia capitalista começou a ver o terreno fugir-lhe debaixo dos pés, e atemorizada sem ber defender-se nem contra atacar dado que ela própria estava pelas ruas da amargura recorreu a alguns papões sociais tentando assim receber em seu benefício os serviços que se propunha. De facto,percebe-se que desta forma o reaparecimento destas macabras e repelentes ideias, racismo , xenofobia, sexismo, acabam por fazer jeito ao democrático capitalismo porque assim podem levantar bem alto as virtudes do Estado de Direito, da liberdade, da emancipação da mulher e da democracia.

Lucindo Manuel Zegre 12/10/2020, 15:17

Magnífico texto!! Parabéns ao seu autor!! Os problemas que afectam de um modo geral, as mulheres são descritos com total clareza e objectividade!!
Agradeço a sua publicação!!


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