Um silêncio criminoso cerca Julian Assange

Urbano de Campos / John Pilger — 22 Setembro 2020

Assange, antes de ser raptado da embaixada do Equador em Londres

Decorre em Londres uma monstruosa farsa judicial. Julian Assange, o jornalista criador do WikiLeaks em 2006, está à beira de ser extraditado para os EUA, acusado de traição por ter revelado verdades inconvenientes: os crimes de guerra, as conspirações, as falsidades produzidas pelo imperialismo norte-americano e as cumplicidades dos seus aliados. A comunidade jornalística pelo mundo fora, portuguesa incluída, mantém sobre o assunto um silêncio cobarde e criminoso.

O jornalismo, que diz de si próprio ser o “quarto poder” — aquele que poria a verdade acima de tudo e denunciaria os abusos do poder político em nome do povo e da democracia — mostra aqui a sua verdadeira face: serventuário das classes dominantes, arma ideológica contra o povo, fabricante e veículo das ilusões que sujeitam as massas à arbitrariedade do poder.

As denúncias que Assange divulgou feriram os poderes instalados no seu ponto mais nevrálgico: os bastidores das conspirações políticas que promoveram acções militares destruidoras como a do Afeganistão e do Iraque; e tudo o que em volta delas se teceu como justificação para neutralizar a opinião pública.

Estas denúncias, uma vez feitas, não valem apenas para os casos concretos do Iraque ou do Afeganistão. Elas têm a particularidade de revelar um padrão de comportamento do imperialismo e, desse modo, tendem a destruir a carapaça de protecção que ilude o público acerca dos actos dos seus governantes. Nos bastidores do poder — por detrás de aparências legais, humanitárias e democráticas — trabalham criminosos.

Ao jornalismo instalado não interessa revelar os factos; interessa defender um estado de coisas. É por isso que, em relação ao caso caseiro de Rui Pinto, poucas vozes se ouvem a defendê-lo, e o silêncio seja sobretudo pesado no que toca aos jornalistas.

Pouco interessa que o jovem revele a podridão que grassa no futebol, na banca ou na Justiça. Pouco interessa que Rui Pinto, com um simples computador, tenha posto a nu aquilo que a PJ não viu. Pouco interessa? Pior que isso: não interessa nada aos poderes instalados, jornalismo incluído, que as verdades sejam postas cá fora sem controle e sem escrutínio prévio — porque isso é meio caminho andado para que “verdades” oficiais laboriosamente montadas fiquem em cacos aos olhos do público.

É isto que leva a comunicação social a evitar discutir na praça pública a matéria das denúncias de Rui Pinto e a dedicar-se antes a especulações morais sobre a “legitimidade” da obtenção das provas; ou a cretinas distinções entre um “denunciante” e um “pirata informático”. O que dói ao poder são, não só as denúncias em si, mas sobretudo o facto de ter sido um simples cidadão a pôr cá fora o que as instituições (com atribuições de defesa da sanidade do regime) nunca tinham sequer aflorado— ou, quem sabe, guardavam sob silêncio…

O caso de Assange tem evidentemente outra escala porque atinge o coração do poder imperialista. A WikiLeaks publicou em 2010 uma série de documentos que provavam os crimes cometidos contra o Afeganistão e o Iraque e as montagens que os justificaram perante a opinião pública. E outros tantos documentos que revelavam a espionagem praticada pelas embaixadas dos EUA sobre dirigentes políticos por todo o mundo. A barbaridade e a canalhice ficaram a nu em doses maciças.

Os EUA acusaram Assange de espionagem e requereram a sua extradição. Começou então o seu calvário, numa acção concertada entre as Justiças da Suécia, do Reino Unido e dos EUA. Assange refugiou-se na embaixada do Equador em Londres durante sete anos (2012-2019) de onde foi retirado pela polícia britânica num vergonhoso acto de colaboração das autoridades equatorianas — depois de uma conveniente mudança de poder político no Equador que levou à presidência um aliado dos EUA.

Encarcerado depois durante 50 meses na prisão de Belmarsh, em condições degradantes, sob tortura psicológica, Julian Assange encontra-se hoje em más condições de saúde, como testemunham os que o visitaram na cadeia. Em 7 de Setembro começou em Londres o julgamento do pedido de extradição feito pelos EUA.

A farsa é denunciada por poucos. Um deles é John Pilger, jornalista veterano, activo denunciador da guerra contra o Iraque. O texto que se segue é uma declaração feita por ele à saída do tribunal de Old Bailey, no qual se insurge contra a caricatura de justiça que decorre em Londres e em que questiona os colegas de profissão acerca do seu silêncio cúmplice e, afinal, da sua cobardia.

Uma nota final. A referência de John Pilger ao julgamento como “estalinista” soa a chavão fácil, talvez para cair no goto de uma certa opinião pública tida por “liberal”. Não se pretende, com esta nota, defender os julgamentos de Moscovo anteriores à Segunda Guerra, a que Pilger parece referir-se, apesar da indicação dissonante ao período da Guerra Fria. A questão é outra.

Pilger tinha à mão paralelos muito mais adequados. Por exemplo, as perseguições “aos comunistas” praticadas antes e depois da Segunda Guerra (pelo menos, entre 1938 e 1969) pela Câmara dos Representantes e pelo Senado dos EUA, sobretudo sob a acção do senador Joseph MacCarthy nos anos 50. Ou a cruzada “anti-terrorista” de George Bush e o campo de concentração de Guantânamo, que continua a albergar presos sem culpa formada. Ou a morte, em Julho de 2003, do cientista britânico David Kelly — inspector de armamento da ONU desde 1991 — “suicidado” depois de ter denunciado as mentiras de Tony Blair sobre a existência de armas de destruição maciça no Iraque, argumento forjado para a invasão levada a cabo em Março de 2003.

A escolha de Pilger tem um efeito ideológico preciso: dizer que os crimes cometidos pelas democracias burguesas são “desvios” da sua matriz “humanista”, e não a sua normal linha de conduta; que farsas de justiça são pecados que as democracias só cometem quando imitam os maus métodos dos “comunistas”; enfim, que as democracias burguesas apenas precisam de ser limpas de más práticas para funcionarem na perfeição. Contra isto, os factos apontam exactamente em sentido contrário. A declaração de John Pilger vale pela podridão que revela e pelo dedo que aponta a uma comunicação social servil, voluntariamente narcotizada.

 

O JULGAMENTO ESTALINISTA DE JULIAN ASSANGE: DE QUE LADO ESTÁ VOCÊ?

John Pilger

Quando conheci Julian Assange, há mais de 10 anos, perguntei-lhe porque havia iniciado o WikiLeaks. Ele respondeu: “Transparência e responsabilidade são questões morais que devem ser a essência da vida pública e do jornalismo”.

Nunca tinha ouvido um jornalista ou editor invocar a moralidade dessa maneira. Assange acredita que os jornalistas são os agentes das pessoas, não do poder: que nós, as pessoas, temos o direito conhecer os segredos mais sombrios daqueles que afirmam agir em nosso nome. Se os poderosos nos mentem, temos o direito de saber. Se eles dizem uma coisa em privado e o contrário em público, temos o direito de saber. Se eles conspiram contra nós, como Bush e Blair fizeram sobre o Iraque, fingindo ser democratas, temos o direito de saber.

Esta moralidade de propósitos ameaça o conluio das potências que querem mergulhar grande parte do mundo na guerra e enterrar Julian vivo na América fascista de Trump.

Em 2008, um relatório ultrassecreto do Departamento de Defesa dos EUA descreveu em detalhe como os Estados Unidos combateriam esta nova ameaça moral. Uma campanha de difamação pessoal dirigida secretamente contra Julian Assange torná-lo-ia “indefeso” e sujeito a “processo criminal”.

O objectivo era silenciar e criminalizar o WikiLeaks e o seu fundador. Página após página revelava-se uma guerra iminente contra um único ser humano e contra o próprio princípio da liberdade de expressão e de pensamento, e contra a democracia. As tropas de choque imperiais seriam aquelas que se autodenominam jornalistas: os grandes lançadores da chamada opinião dominante, especialmente os “liberais” que demarcam e patrulham os perímetros da dissidência.

E foi isso que aconteceu. Sou repórter há mais de 50 anos e nunca conheci uma campanha de difamação como esta: o assassinato forjado de um homem que se recusou a entrar no clube; que acreditava que o jornalismo era um serviço ao público, nunca aos que estão acima.

Assange envergonhou os seus perseguidores. Ele produziu denúncia após denúncia. Ele expôs a fraude das guerras promovidas pelos media e a natureza homicida das guerras dos EUA, a corrupção dos ditadores, os males de Guantânamo.

Ele forçou-nos no Ocidente a olhar ao espelho. Ele desmascarou os contadores da verdade oficial nos media como colaboradores: aqueles que eu chamaria jornalistas de Vichy. Nenhum desses impostores acreditou em Assange quando ele avisou que a sua vida estava em perigo: que o “escândalo sexual” na Suécia era uma armadilha e um inferno americano era o seu destino final. E ele estava certo, repetidamente certo. 

A audiência de extradição em Londres nesta semana [7 Setembro] é o acto final de uma campanha anglo-americana para enterrar Julian Assange. Não é um processo legítimo. É uma vingança. A acusação norte-americana é claramente manipulada, uma farsa demonstrável. Até agora, as audiências lembraram os seus equivalentes estalinistas durante a Guerra Fria.

Hoje, a terra que nos deu a Magna Carta, na Grã-Bretanha, destaca-se pelo abandono da sua própria soberania ao permitir que uma potência estrangeira maligna manipule a justiça, e pela viciosa tortura psicológica de Julian — uma forma de tortura, como destacou Nils Melzer, especialista da ONU, refinada pelos nazis porque era mais eficaz em quebrar as vítimas.

Todas as vezes que visitei Assange na prisão de Belmarsh, vi os efeitos dessa tortura. Quando o vi pela última vez, ele tinha perdido mais de 10 kg de peso; os seus braços não tinham músculos. Incrivelmente, o seu terrível sentido de humor estava intacto.

Quanto à pátria de Assange, a Austrália demonstrou apenas uma cobardia humilhante, já que o seu governo conspirou secretamente contra o seu próprio cidadão, que deveria ser celebrado como um herói nacional. Não foi à toa que George W. Bush ungiu o primeiro-ministro australiano como seu “vice-xerife”.

Diz-se que o que quer que aconteça com Julian Assange nas próximas três semanas diminuirá, se não destruir, a liberdade de imprensa no Ocidente. Mas qual imprensa? O The Guardian? A BBC, o New York Times, o Washington Post de Jeff Bezos?

Não, os jornalistas dessas organizações podem respirar livremente. Os Judas do The Guardian que namoraram Julian, que exploraram o seu trabalho marcante, fizeram a sua tarefa e traíram-no, não têm nada a temer. Eles estão seguros porque são necessários.

A liberdade de imprensa agora depende de uns poucos honrados: as excepções, os dissidentes na internet que não pertencem a nenhum clube, que não são ricos nem carregados de Pulitzers, mas produzem jornalismo moral desobediente — aqueles como Julian Assange.

Enquanto isso, é nossa responsabilidade apoiar um verdadeiro jornalista, cuja coragem absoluta deve servir de inspiração para todos nós que ainda acreditamos que a liberdade é possível. Eu saúdo-o.


Comentários dos leitores

leonel clérigo 23/9/2020, 16:21

Esta HOMENAGEM que se faz acima a ASSANGE é, em minha opinião, mais que merecida à coragem dum JORNALISMO, hoje raro, que ainda se permite arriscar a sua pele em nome de VALORES. Leva-nos isto a julgar que nem tudo está perdido.
Temos cá também um RUI PINTO. E não deixa de ser "curioso" notar uma COMUNICAÇÃO SOCIAL "foleira" que, desde o Início, o denomina de "PIRATA informático". É costume dizer-se: "Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és..."
Esta minha modesta homenagem vai então para a CORAGEM, hoje rara no Jornalismo, que se arrisca em trazer "à luz do dia" os graves problemas das nossas Sociedades.

Anunciou-se recentemente que Portugal vai ter proximamente um "PLANO de RECUPERAÇÃO e RESILIÊNCIA" (um nome curioso a descodificar...) cujo objectivo parece ser o de tentar "eliminar" de vez (já se ouviu ser a "última oportunidade") o ancestral Subdesenvolvimento do País.
Aleluia!... Para já, um PLANO é coisa rara num país que transporta no seu ADN o "Desenrrascanço" mascarando-o hoje de "liberalismo" de vanguarda. Por isso, julgo valer a pena ir à "descoberta" do seu "real" CONTEÚDO e divulgá-lo.
Atrevo-me então a sugerir ao MV - se o entender, claro! - que tente lançar um debate "crítico" sobre este ainda "enevoado" PLANO e o que pode ele - ou NÃO...- . significar sobre a dita "Oportunidade única de transformar o PORTUGAL SUBDESENVOLVIDO em DESENVOLVIDO.
E sugiro mais: que este DEBATE "crítico" seja "enquadrado" - como desafio - pelos primeiros versos do "RETRATO EM BRANCO e PRETO" de FRANCISCO BUARQUE de HOLANDA:

Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor
(...)
Com seus mesmos tristes velhos fatos
Que num álbum de retratos
Eu teimo em colecionar

afonsomanuelgoncalves 26/9/2020, 10:54

Assange representa no nosso tempo Prometeu no inferno que Ésquilo narrou na sua imortal obra. Se estivermos atentos à forma como decorrem os acontecimentos e aos personagens que os vivem percebemos que a vida dos defensores da verdade e dos oprimidos e suas consequências não são assim táo diferentes como foram há mais de 2500 anos. Assim como a terra demora desde há milhôes de anos 365 a fazer uma órbita à volta do sol, Assange e Prometeu têm o mesmo destino por terem desafiado os senhores da humanidade. Este episódio e a sua vítima, reflectem bem este tempo com as suas manipulações ardilosas e gerais que nenhum deus poderá alterar. Marx afirmou que Prometeu foi o primeiro herói e o primeiro mártir da revolução. Hoje Assange é o continuador dessa saga.


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