O vírus do capitalismo

António Louçã — 10 Fevereiro 2020

Será preciso assentar a poeira para se entender quais, na discussão sobre a pandemia do coronavírus, são afirmações cientificamente comprováveis e quais são apenas instrumentais para manter o business as usual do capitalismo. Uma coisa é certa: as enérgicas medidas de emergência que qualquer autoridade de saúde pública teria tomado imediatamente para travar a contaminação foram inibidas pela ponderação dos danos que causariam aos lucros dos accionistas de companhias aéreas, de multinacionais da área do turismo e entretanto já de quase todas as outras.

A agilidade do capitalismo para meter o nariz em tudo o que lhe cheire a proveitos fáceis tem o seu contraponto na lentidão do Estado capitalista para reagir a catástrofes naturais, a alterações climáticas ou a fenómenos epidémicos.
À China, foco inicial da difusão da doença, aponta-se em muita imprensa ocidental um dedo acusador, como se fosse característica específica de uma burocracia comunista, esta de silenciar e encobrir.

Desde Deng Xiao Ping, cantaram-se ditirambos sem conta ao “realismo” da burocracia chinesa, que teria reconhecido a superioridade do capitalismo, largando desenvoltamente o lastro da ideologia marxista para se fazer ao mundo dos negócios com verdadeiro fervor neo-liberal.

Agora, que o descontrolo e a desregulamentação do neo-liberalismo chinês explodem numa epidemia irradiada a partir de um mercado caótico de Wuhan, a mesma imprensa assobia para o lado, como se a lei da selva adamsmithiana nada tivesse a ver com essa catástrofe social, e como se a burocracia silenciadora e encobridora não fosse a mesma que durante décadas promoveu o salve-se quem puder do capitalismo.

É verdade que a burocracia chinesa adiou quanto pôde a comunicação da epidemia à OMS e apenas se decidiu a dar esse passo quando já estava necessitando desesperadamente de ajuda e quando já se tinham tornado inadiáveis na própria China medidas de quarentena socialmente traumáticas, a envolver dezenas de milhões de pessoas. É igualmente verdade que os primeiros médicos a detectarem a epidemia foram alvo, eles sim, de uma quarentena política cuja extensão não é inteiramente conhecida, mas que tem a sua expressão mais simbólica na morte de um deles. É também verdade que a burocracia chinesa procura por todos os meios silenciar a difusão de notícias na imprensa e de notícias ou boatos na internet. E é ainda verdade que nenhuma medida especial foi tomada para impedir que as viagens de cooperantes chineses e suas famílias para o continente africano causem o contágio nesse que é, devido à fragilidade dos seus sistemas de saúde pública, considerado o continente mais exposto a consequências devastadoras da epidemia.

É verdade que a burocracia chinesa começou por ocultar a existência deste flagelo que dura há várias semanas. Mas, para atingir os píncaros de ocultação e negacionismo que nos tem brindado a Administração Trump, a tapar o sol com a peneira e a negar a evidência de alterações climáticas que o capitalismo vem causando desde há décadas, esta burocracia ainda tem muito que aprender.


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