A abstenção é de esquerda?

António Louçã — 11 Setembro 2019

A política institucional que temos não desperta entusiasmos nem atrai simpatias. Os acordos de bastidores, os golpes baixos da polémica, a intriga permanente dos lobbies económicos, a venalidade de muitos eleitos e eleitas – tudo isso é moeda corrente na rotina parlamentar, e de tal modo se tornou regra que o povo descrê das excepções, perde sensibilidade para os matizes e faz pagar aos poucos justos como aos muitos pecadores.

Há motivos de peso para muita gente voltar as costas à política e há muito quem aproveite as eleições para proclamar a sua repugnância pela política: desde há décadas, a abstenção vem crescendo. A crítica radical da sociedade capitalista está naturalmente tentada a valorizar os motivos do abstencionismo. Alguma dessa crítica dá mesmo o passo seguinte e subscreve o abstencionismo de uma parte substancial do eleitorado. Será a abstenção uma forma incipiente de radicalização à esquerda?

A esquerda que se mimetiza com os abstencionistas corre o risco de cair numa ilusão óptica: agitámos para que se abstivessem por bons motivos, eles e elas abstiveram-se; pelo menos uma parte deve ter-se abstido pelos bons motivos que nós defendemos; quando houver uma alternativa política radical e combativa, podemos chamar este eleitorado a votar na dita alternativa e ele virá, porque os bons motivos para se abster hoje serão os mesmos para votar amanhã.

Dir-se-á que este raciocínio não pode, hoje, ser contestado empiricamente, porque não existe a tal alternativa política ideal, ou pelo menos satisfatória e, portanto, não podemos ver como as pessoas se comportariam perante ela. Dir-se-á também que, tendo em conta os “bons motivos” para não votar, é legítimo apostar na essência esquerdista do abstencionismo e que tal aposta só poderá ser verificada quando houver uma alternativa mais à esquerda.

Mas o benefício da dúvida que nos pedem activistas antiparlamentares certamente bem intencionados não é tão razoável como pode parecer. E não é tão razoável porque a única impossibilidade, por enquanto, é a de verificar empiricamente como se comportaria a massa dos e das abstencionistas perante uma alternativa à esquerda. Ao contrário dessa alternativa, que não existe, já se pode verificar empiricamente como se comporta grande parte da massa abstencionista perante alternativas mais à direita.

Assim, em diversas eleições (na Itália, na Áustria, mais recentemente na Alemanha), o abstencionismo começou a descer. E a descida veio de mãos dadas com aumentos de votação da extrema-direita.

Concretamente, nas eleições do início de setembro para os parlamentos regionais alemães na Saxónia e em Brandenburgo, um estudo da agência Infratest dimap apurou que a AfD (Alternativa para a Alemanha, de extrema-direita) atraiu às urnas cerca de 346.000 abstencionistas. A AfD teve agora mais votos de abstencionistas do que todos os que tinha obtido nas anteriores eleições, em 2014. Enquanto todos os outros partidos (com excepção parcial dos Verdes) continuavam a perder mais votos para a abstenção que os que iam lá buscar, a AfD foi a grande ganhadora do voto vindo do abstencionismo – grande parte dele voto de operários e desempregados.

Pelo contrário, o SPD, com uma velha tradição de hegemonia no eleitorado operário, tornou-se o partido parlamentar menos votado pelos operários da Saxónia (5 por cento, ao lado dos liberais que ficaram fora do parlamento). Em Brandenburgo, embora tenha conservado 20 por cento do voto operário, o SPD viu-se largamente batido pela AfD, que teve mais de 40 por cento desse voto.

Significa isto que muitos operários andavam a abster-se e, portanto, os abstencionistas podem afixar a pretensão de estarem a nadar com a corrente operária predominante? Em certos casos, talvez. Mas também significa que os reparos dirigidos pela social-democracia ao abstencionismo, segundo o qual este lhes rouba votos e beneficia a extrema-direita, são completamente infundados. Nem o SPD na Alemanha, nem esquerda alguma noutra parte da Europa, são proprietários dos votos de operários revoltados com a degradação social, e que por isso optaram durante anos pela abstenção.

E, embora a extrema-direita também não seja dona do voto das grandes massas abstencionistas, a observação empírica das eleições regionais alemãs permite concluir que muito eleitorado embrutecido pelos atentados neo-liberais e pelas traições social-democratas está mais próximo de ser ganho pela extrema-direita do que de voltar aos braços de partidos que o enganaram.

A esse eleitorado, os governos que lhe provocaram repugnância pela política fizeram-no abominar todos os partidos, até aparecer algum que valesse a pena. Agora, apareceu a extrema-direita e uma multidão de abstencionistas acha que ela, sim, vale a pena – e os partidos do sistema deitam as mãos à cabeça por terem de colher o que andaram a semear. A abstenção não tem sido uma ponte para a esquerda, e sim uma ponte para a direita mais extrema.


Comentários dos leitores

João Medeiros 11/9/2019, 17:27

A abstenção é de direita!?
Então, o "Mudar de Vida" aconselha votar em quê? No PC, no BE? O mal menor? Não posso acreditar ...
"(...) só quem esteja anestesiado pela retórica dos informes do PCP ou pelas “modernas” elucu­brações do BE não vê a degradação das instituições demo­cráticas burguesas, a concentração inaudita do poder, a es­calada da propaganda e da vigilância policial, a recusa abso­luta, cega, brutal, das classes exploradoras em consentirem o fim do seu poder, recusa confirmada dezenas de vezes da forma mais sangrenta por esse mundo fora. Até nós, em Portugal, com a nossa tímida experiência do PREC, recebemos umas luzes elementares de como funciona a luta de classes em período de crise do poder. Se a passagem ao socialismo se conseguisse com “grandes acções de massas e um ou outro acto violento aqui ou ali”, não faltariam os triunfos do socialismo por esse mundo fora. A passagem ao socialismo exige uma sucessão de revoluções de propor­ções até hoje desconhecidas e é bom que nos vamos prepa­rando para isso. Opor a estes factos a hipótese teórica de Engels e continuar a falar em passagem pacífica ao socialis­mo mostra pouca lucidez.
Não, caro Faria, nós não estamos à espera de que outros “sacudam a árvore para nós apanharmos os frutos” nem somos adeptos do imobilismo, da mera propaganda da insurreição armada contra o poder capitalista. Isso é uma má caricatura da nossa posição. Nós participamos nas acções do dia-a-dia, pelos objectivos limitados actualmente possíveis, mas sempre com o alvo de construir a única força que realmente conta – a confiança dos trabalhadores nas suas próprias forças, a recusa deste modo de vida, a desconfiança perante as promessas paternalistas da esquerda do regime, a certeza de que ninguém lhes oferecerá o socia­lismo se não forem eles próprios a conquistá-lo. A nossa aposta é para mais resistência do proletariado, mais empe­nhamento na mobilização directa das massas, maior consci­ência da sua identidade antagónica à sociedade burguesa, mais rebeldia – tudo aquilo que falta nas candidaturas do PCP e do BE."
FMR, in, https://anabarradas.com/2017/10/28/porque-nao-votar-no-pcp-ou-no-be/

afonsomanuelgoncalves 11/9/2019, 19:10

António Louçã descreve com exatidão o que se passa actualmente em matéria de eleições democráticas como os partidos tradicionais ligados ao poder gostam de frisar.Habituados a ganhar facilmente, consideraram depois de se apoderar de mordomias e prebendas especiais e discriminatórias (sobretudo em Portugal) tinham como favas contadas a garantia de manter o poder ad eternum. No entanto com o acentuar da crise capitalista e com a agressão militar imperialista tudo começou a correr mal. O abstencionismo que quase desde sempre foi muito forte não encontrava entretanto uma forma activa de protestar através do voto, dado que oposição e poder comungavam da gamela parlamentar numa encenaçáo simulada de despique político. A esquerda não existia a fazer a diferença e por isso não valia a pena votar. A extrema direita que sempre se fez ouvir ao longo das campanhas era no entanto facilmente apeada quando todos se uniam contra ela e agora embora as regras da propaganda o voto de protesto ganhou nova expressão e aí temos o panorama actual com a chamada esquerda desacreditada e os partidos do poder logados como unha com carne deseperadamente a querer salvar a UE e a dar corda ao imperialismo para salvar o capital da revolução. .

leonel clérigo 14/9/2019, 11:16

DIALÉCTICA
Em minha modestíssima opinião - e fico grato que argumentem onde estou errado... - julgo não ter sentido interrogarmo-nos se - em si - a "ABSTENÇÃO" é de ESQUERDA ou de DIREITA. Depende. Querer "colocar" aqui um "absoluto" julgo não ter cabimento fora da "análise concreta da situação concreta".
Faz-me isto lembrar - e não há muito tempo... - o querer-se "escolher", como "chave" da "coisa boa", entre o "livre-cambismo" e o "proteccionismo", sendo este último originado no campo das forças do mal de Darth Vader. Esta opinião - mesmo sem o saberem - de "Globalistas" (por vezes até escudados na autoridade de Marx com citações à "papo-seco") bafejavam indirectamente o "livre-cambismo como "paraíso celeste". Como dizia o "outro": o que nos falta é DIALÉCTICA. Os "dilemas" da Contradição da "Filosofia clássica alemã" nascidos com Kant, são "bem recebidos" por Hegel. Mas deste, não "convém" falar...Dá "cabo da cabeça"...
Contudo não quero deixar em branco a pergunta, bem pertinente, do João Medeiros, sacudindo eu a "água do capote".
Voto no PCP.


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