De Salazar a Marcelo

Urbano de Campos — 16 Abril 2019

No ambiente de incerteza que agita a NATO, não admira que os europeus menores, como Portugal, sejam por vezes os mais pressurosos defensores da continuidade e mesmo do reforço da Aliança, num reflexo próprio de quem não se quer ver na pele de um órfão. A nova justificação para a continuidade da NATO — as “modernas ameaças” que assombram o Ocidente, nomeadamente o “perigo russo” e o “terrorismo” — propagou-se por todos os cabeçalhos e todos os discursos.

O presidente da República deu, contudo, ao assunto um toque especial. Com tropas em desfile frente ao Padrão dos Descobrimentos, Marcelo fez, a 4 de Abril, um panegírico da NATO próprio de um herdeiro do velho regime e de um admirador da “lucidez” política de Salazar. Sem, claro está, elogiar o regime ou citar o nome do ditador.

Os meios de comunicação apenas deram destaque, com o automatismo do costume, às mesmíssimas frases de circunstância, mil vezes repetidas, mas que são justamente as que colocam o país na atitude miserável de um servidor sempre disposto a inclinar a cabeça diante dos poderosos, concretamente os EUA. Um Portugal “leal, dedicado e competente” é, para Marcelo e para os que o citam, um modelo — e foi isso exactamente o que deu título a todas as notícias de todos os azimutes.

Mas é o lado passadista e reaccionário do discurso, apenas registado sem comentários pela imprensa, que tem mais interesse destacar.

Portugal, disse o PR, mesmo sendo, em 1949, “um regime abertamente antidemocrático e antiliberal”, fez tudo para aderir à NATO e foi um dos seus fundadores. Acrescenta Marcelo, explicando: “O pragmatismo dos EUA” somado à “importância estratégica” dos Açores no Atlântico “valeram mais que questões de afinidades ideológicas”. Dito de outra maneira, tratou-se de uma vitória da ditadura sobre as democracias ocidentais, sem dúvida, que valeu ao regime mais 25 anos de vida e o apoio a uma guerra colonial que iria durar 13 anos. Com tudo o que isso significou de traição aos anseios democráticos e de liberdade do povo português (e espanhol também, já agora). É essa vitória que as palavras do PR afinal celebram.

Marcelo louva o facto de a NATO, no presente, se virar para África e “começar a valorizar o Atlântico como um todo”. Mas critica a demora na decisão: “É verdade que demorou às vezes tempo de mais a atingir essas percepções, mas chegou lá”. Quem teve o mérito de ver mais cedo e mais longe? Obviamente, o salazarismo-marcelismo. E o PR tira daí louros para o velho regime: durante a Guerra Fria, sublinha ele, a ditadura portuguesa “insistiu sem sucesso” para que a NATO cuidasse do Atlântico Sul e, portanto, “viu muito cedo o que outros só veriam mais tarde”. Portugal “não mudou”, concluiu.

E, como não mudou, também o Portugal da burguesia democrática considera a NATO, pela voz do seu representante máximo, “uma das coordenadas essenciais da sua visão do mundo e da sua política externa”. A prova disto, para Marcelo, está aqui: “Mudam os presidentes, a composição do Parlamento, os primeiros-ministros e os governos e essa coordenada permanece firme, sólida, constante, inquestionável”.

Mas esta continuidade, que Marcelo parece querer apresentar como uma espécie de plebiscito à NATO, é apenas a demonstração de que entre a burguesia “antidemocrática” (de que ele fez parte) e a burguesia democrática (de que ele faz parte) não existe nenhum abismo, apenas uma continuidade — por sobre o sobressalto da onda popular de 74-75. Por isso ele diz, olhando para si próprio, que Portugal “não mudou”.

Esta tão marcelista (do padrinho Marcelo Caetano) “renovação na continuidade” é o espírito que — no fundo, no fundo — anima o marcelismo de Marcelo Rebelo de Sousa.

Diante desta arquitectura mental, como pode dar-se crédito ao voto — formulado em jeito de cantoria de parabéns — de ver a NATO contribuir para um “mundo mais livre, mais justo, mais aberto, mais respeitador da dignidade da pessoa e dos seus direitos” ?…


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalves 17/4/2019, 11:41

O pensamento politico em Portugal permanece prisioneiro de esteriotipos que se cristalizaram ao longo do sec. XX, não sofrendo um olhar crítico mais objectivo e verdadeiro. Dizer que Portugal é uma democracia burguesa desde o 25 de Abril, parece-me um pouco exorbitante, isto porque o 25 de Abril apanhou de surpresa o regime fascista e a burguesia fascista que virou democrata e até socialista de um dia para o outro. Basta lembrar os discursos de Freitas do Amaral, Sá Carneiro e outros para confirmar esta premissa. Parece-me que a alteração política realizada foi a instauração de um regime pluripartidário e náo uma democracia burguesa como se propagou demagogicamente ao longo de todos estes anos. Daí uma certa confusão que se instalou na consciéncia do povo português. Nesta perspectiva discordo um pouco da análise de Manuel Raposo que vé o regime democrático enquanto eu o vejo como uma extensão diluída do fascismo.

leonel clérigo 18/4/2019, 16:33

Se seguíssemos à risca os dois primeiros parágrafos do comentário de Afonso Gonçalves, talvez um dia acordássemos com as cabeças mais arejadas mas surpresos por, afinal, não vivermos em “Democracia”.
Quanto à “Democracia burguesa” - ensinaram-me que “adjectivar” é coisa perigosa para qualquer "universal" que se preste à malandrice - continuo, hoje como ontem, a achar curioso o “dito” de Régis Debray:
"A Democracia é o que resta da República quando se apagam as Luzes.”
Ou seja: possivelmente um "cadáver" por inteiro.


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