Chamar os bois pelos nomes

António Louçã — 11 Março 2019

Nas discussões sobre a violência doméstica, não há dúvidas sobre quem é quem. À direita, aparece-nos um partido – o Vox espanhol – a reclamar o desagravamento das penas previstas para a violência de género. Da esquerda vêm as propostas mais incisivas para combater esse tipo de violência. Mas há surpresas.
Surpreende, por exemplo, que na acesa polémica sobre o juiz Neto de Moura, o PCP recuse criticar o juiz, a pretexto de não querer “individualizar”.

Claro que seria uma “individualização” excessiva fazer de Neto de Moura um bode expiatório e criar a ilusão de que a Justiça passaria a andar sobre rodas logo que ele fosse corrido. Mas apontar as mazelas do “sistema”, com um discurso vago de pretensa profundidade teórica, corre o risco de branquear os indivíduos e a sua responsabilidade no funcionamento desse sistema.

Pior ainda, quem queira limitar-se a emitir considerações genéricas sobre o “sistema” priva-se de pegar na ponta da meada, que é sempre “individualizada”, priva-se de desenrolar essa meada e de utilizar um instrumento de decisiva importância para desmantelar este “sistema” viciado e injusto.

Assim, quem queira abster-se de criticar Neto de Moura apenas acaba por silenciar as críticas ao Conselho Superior da Magistratura (CSM). Se não se vê nada mal num juiz individual que acha inofensivo o marido espancar a mulher com uma moca de pregos, então também não haverá nada de mal nesse CSM que decide deixá-lo em funções. E o CSM, recordemo-lo, é de certo modo o coração do sistema judicial.

E, como tudo isto é uma bola de neve, Neto de Moura, encurralado pelas vozes críticas, anunciou que iria processá-las todas. Retaliou, assim, com a moca de pregos dos processos por difamação. Dizia-se no tempo do fascismo que o banco dos réus do Tribunal Plenário era o último refúgio da honra; assim deveria dizer-se agora que um lugar na lista dos processados por Neto de Moura é indispensável em qualquer curriculum cívico decente. Todos nós, que não fomos processados, teremos contra o juiz mais esse motivo de queixa: ele ignorou a nossa indignação pelo que escreveu e o nosso desprezo pela sua pesporrência de “órgão de soberania”.

Calar logo à partida qualquer crítica a um dos símbolos mais caricatos do sistema redunda agora em calar qualquer crítica à sua reacção furiosa e bacoca. Porque, finalmente, também essa reacção, por muito que surja das entranhas e das profundezas do “sistema”, é uma reacção “individual”.

Os seres humanos fazem a História, embora a façam em condições determinadas e independentes da sua vontade. Por isso mesmo, só se combate o “sistema” chamando os bois pelos nomes.


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