Os democratas sensatos perante o fascismo

Manuel Raposo — 23 Outubro 2018

Quando começou o processo de destituição de Dilma Russeff da presidência do Brasil, e mesmo quando ele se consumou, a direita portuguesa e os democratas-respeitadores-das-instituições disseram que não se tratava de golpe nenhum, mas apenas do normal funcionamento da ordem democrática. Quando se denunciou a mão invisível dos EUA a querer virar o rumo da América Latina, os mesmos disseram que isso era mais uma miragem da esquerda anti-imperialista.

Agora que o fantoche de turno Michel Temer sai de cena e dá lugar a um fascista declarado, já se ouvem alertas contra o perigo de uma nova ditadura e o regresso dos militares. Agora que já se diz abertamente que o Departamento de Justiça e os serviços secretos norte-americanos (muito antes de Trump) forneceram aos golpistas brasileiros os dados para perseguir e inculpar os dirigentes do PT (1), já se vai dizendo que Bolsonaro é um Trump para pior.

É este mesmo comportamento que leva os democratas sensatos a classificar os fascistas europeus ou norte-americanos apenas como “extremistas” e “populistas” — só porque eles actuam, para já, dentro dos formalismos democráticas.
Se a democracia que temos, já de si, é um aparelho para afastar os interesses dos trabalhadores da condução política do país — e por isso merece o nome de uma ditadura da minoria burguesa sobre a maioria do povo, consagrada embora pelo voto ritual —, o uso, meramente táctico, que a extrema-direita faz das instituições democráticas é o primeiro passo de uma caminhada para esmagar qualquer veleidade de afirmação das vozes populares.

A tolerância “democrática” para com os fascistas (2) repete, nas condições de hoje, a conivência das democracias europeias e norte-americana com a ascensão de Hitler e Mussolini, com o esmagamento da República Espanhola e depois com o apoio a Salazar e Franco, aos coronéis gregos e aos generais brasileiros, a Pinochet e Videla, etc., etc..
O paralelo tem razão de ser. Então como agora, a burguesia teme acima de tudo a revolta das massas e o poder exercido pelas classes trabalhadoras. Perante essa eventualidade o fascismo é-lhe aceitável, quando não simpático.

Face à criminalidade e à insegurança das populações também o fascismo lhe é útil. O sistema democrático burguês torna-se cada dia mais incapaz de as debelar, porque as gera todos os dias através de desigualdades materiais crescentes. Iludida esta origem, o capitalismo e o sistema burguês ficam absolvidos, e todo o género de falsas justificações é possível na base da “raça”, das diferenças étnicas e religiosas, ou da simples “maldade humana”. A brutalidade policial — contra “os bandidos”, claro — é apresentada às camadas populares (regra geral, as primeiras vítimas dessa criminalidade) como solução para pôr ordem no caos. E é como tal aceite por muita gente, não apenas nas Filipinas ou no Brasil, mas também na Europa e por cá mesmo.

Não está à vista uma revolução social em nenhuma parte do mundo. Mas as condições para que ela amadureça estão a ser criadas pelo próprio capitalismo de hoje. O marasmo a que chegou abala não apenas a economia e os negócios, mas também todas as instituições do Estado e todas as crenças burguesas, incluindo a crença nas virtualidades da democracia tal como ela existe — que é a ”democracia real”, ou a “democracia possível”… O aparelho democrático burguês apodrece a partir de dentro, acompanhando o declínio do sistema económico.

Cabe perguntar que conteúdo efectivo podem ter as democracias parlamentares de hoje quando toda a força económica está nas mãos de uma camada burguesa cada vez mais restrita que monopoliza o poder político, e ninguém mais, mesmo largas faixas burguesas, tem possibilidade de ver representados os seus interesses de classe. As democracias que conhecemos assentaram na acumulação de riqueza nas metrópoles capitalistas-imperialistas e deveram a sua estabilidade, até recentemente, a um crescimento económico contínuo, única maneira de a burguesia dominante ter meios para comprar o apoio da pequena burguesia e de parte das massas trabalhadoras ao seu regime. Sem esse crescimento, como agora sucede, a base de apoio da burguesia fragiliza-se e as instituições da democracia formal perdem eficácia prática, e mesmo valor simbólico.

A incapacidade da burguesia em garantir progresso e melhoria de vida à massa das populações, revela-a como uma classe inútil, parasitária e indesejável aos olhos da maioria. O poder burguês está, pois, abalado nos seus fundamentos sociais, porque vai perdendo os argumentos capazes de convencer as massas populares de que o capitalismo, em que assenta a sua dominação, é melhor que qualquer outra coisa.

O fascismo ganha, assim, adeptos entre as classes dominantes, traduzindo a preferência destas pelo “argumento” da força — polícias e militares todo-poderosos, aparelho judicial manipulado, leis restritivas das liberdades individuais, corte de direitos sociais, etc.. É a resposta de classe da burguesia à crise em que o sistema social capitalista, em todos os aspectos, está mergulhado.

Que os fascistas usem como armas a denúncia da corrupção e da criminalidade, o nacionalismo, o ódio aos imigrantes, ou seja o que for — isso apenas respeita aos métodos de propaganda que põem em marcha para arregimentar uma população farta de viver mal e que não vislumbra um outro sistema social que não seja o do poder dos patrões. Mas não é por isso que as classes dominantes ganham nova “legitimidade” para exercerem o poder ou repõem a capacidade do capitalismo para gerar um novo surto de progresso. Ao contrário, a deriva fascista mostra um mundo burguês em estertor, sem hipótese de voltar atrás.

O combate às forças fascistas não pode, portanto, ser conduzido na base de um simples regresso às fórmulas democráticas burguesas — na linha de “aprofundar a democracia”, como gostam de dizer os adeptos do “justo meio termo”.

A ideia, entre as alas esquerdas dos regimes democráticos, de promover a reforma da democracia decorre de uma miragem: a de reverter o capitalismo monopolista-imperialista, mundializado, num capitalismo de dimensão nacional, concorrencial, com o qual se possa negociar, em concertação, os termos do progresso social das massas. Mas as condições objectivas do capitalismo actual tiram base a essa via. A ilusão a que aquela esquerda amarra o proletariado tem, assim, o efeito de o despolitizar, de lhe apagar as fronteiras de classe, de o reduzir à condição de força reivindicativa, de o confundir sobre a natureza da mudança de rumo empreendida pela burguesia mundial no sentido da confrontação de classes — tornando-o uma massa dócil ao arrasto da deriva para a direita.

As democracias burguesas sempre viveram numa contradição entre as desigualdades que o capitalismo cria, e das quais vive, e a igualdade que uma verdadeira democracia pressupõe. Essa contradição chegou ao extremo: a um máximo de desigualdade corresponde um mínimo de democracia.

A democracia burguesa, limitada e caduca, tem de ser, não “aperfeiçoada”, mas superada. Essa superação só pode ser conseguida por uma democracia plena, de facto representativa da grande maioria da população — isto é, das classes trabalhadoras. E isso exige uma mudança das classes no poder: em vez da ditadura de uma minoria burguesa sobre a maioria trabalhadora, uma ditadura da maioria trabalhadora sobre a burguesia capitalista, minoritária. Enquanto houver desigualdades, democracia é isto.

(1) Em Março de 2018, o juiz Sérgio Moro, o capataz da operação Lava Jato, reconheceu a cooperação com o Departamento de Justiça dos EUA, achando-a muito natural e benéfica. Moro frequentou cursos nos EUA desde 1998, e em 2009 participou numa conferência promovida pelos EUA com o objectivo de “treinamento bilateral para aplicação da lei”. Em 2013, Dilma Roussef cancelou uma visita a Washington (era Obama presidente) quando se soube de acções de espionagem dos EUA a membros do governo brasileiro. No ano seguinte, Moro aparece à cabeça da operação Lava Jato, dirigida fundamentalmente contra os dirigentes do PT. Começou aí a instabilidade política de que os EUA viriam a beneficiar, não apenas politicamente, com a destituição de Dilma e a prisão de Lula, mas também economicamente: mal Dilma foi afastada, começou a privatização das reservas petrolíferas do Brasil, beneficiando o capital estrangeiro (EUA, França, Noruega).
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(2) É, no fundo, a posição de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, ex-presidente do Brasil e um dos papas da democracia brasileira, que garantiu abster-se na segunda volta porque… nenhum dos candidatos defende o que ele defende, não se sabendo isto o que é exactamente. Ou seja, na prática favorece a eleição de Bolsonaro. Talvez esta “neutralidade” se possa entender melhor se lembrarmos que o PSDB não foi inculpado por Moro no âmbito da operação Lava Jato, apesar de haver provas de corrupção envolvendo os governos de FHC (1994-2002), tanto para enriquecimento pessoal como para campanhas políticas. Além da delação premiada, há também, pelos vistos, a abstenção premiada.


Comentários dos leitores

leonel clérigo 24/10/2018, 15:36

DEMOCRACIA… AGORA EM FADO MENOR
Há muito que se “sabe” que a “democracia é de classe” ou seja, uns poucos desfrutam dela e quanto ao resto, “É só porrada e mal viver…”.
O Brasil (1) - como outro qualquer dos muitos países subdesenvolvidos - tem disso uma “experiência” larga e, quanto aos outros, dos “coronéis” gregos ao Pinochet e seus amigos “neoliberais” de Chicago, vai um rol de “golpes de Estado”, todos eles, felizmente, “democráticos” o que enche de alegria o coração da pequena-burguesia e lhe permite dormir descansada.
Contudo, pode-se dizer que a “origem” e o “desenvolvimento” da coisa começa a ser “monótona” e até com certa falta de “imaginação”: primeiro, a população dum País vai ganhando “movimento reivindicativo” pela simples razão que já não quer viver nas agruras em que a põem a viver. Aborrecida com a coisa, vai às urnas e ganha as “eleições”. Vai daí, como o capitalismo não tem maneira de solucionar o “desenvolvimento” do País, a “tropa” sai para a rua, mata uns quantos tidos como desordeiros “comunistas” e mal comportados, e a paz e o sossego volta ao “normal”. Este ciclo tem, até agora, sobrevivido impecavelmente e até o Sr. Trump pensou em pô-lo em marcha com a Venezuela, na esperança de apreciar ainda a sua “operacionalidade”. Pelos vistos, ainda está "operacional", até um dia e como ouvi dizer à minha avó: “Tantas vezes o cântaro vai à fonte que lá deixa a asa…”
(1) - Com a minha habitual ignorância que me não permite distinguir o “nome predicativo do sujeito” do “aposto ou continuado”, só recentemente um amigo meu (a quem muito agradeço) me fez chegar às mãos o livro de Pedro Estevam da Rocha Pomar: “Massacre na Lapa”, “Como o exército liquidou o Comité Central do PCdoB” S. Paulo 1976.

aov 25/10/2018, 16:10

O título do post é sugestivo. Quando o Bolsonaro levou a facada o "nosso governo" tuga mandou logo uma mensagem ao mesmo a condenar o atentado.Ora isto, é sensatez pelo fascismo e apoio. Bolsonaro pelas suas palavras é um fascista musculado típico da América Latina igual a Pinochet e a outros ditadores que governaram o Uruguai, Paraguai, Argentina, Brasil, etc. Isto só quer dizer que os democratas sempre foram coniventes com os ditadores e até se passam com armas e bagagens para o lado dos fascistas sem qualquer problema ou passam de fascistas a democratas da mesma maneira porque o respeito pelo fascismo ou pela democracia é muito bonito. O que interessa é estar sempre do lado do poder.


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