A direita e o patronato, imunes ao cretinismo parlamentar

António Louçã — 25 Julho 2018

O ex-ministro socratista Manuel Pinho imortalizou-se um dia com os chifres que fez ao parlamento. Agora voltou ao local do crime, para insistir nas metáforas bovinas em que é especialista: a Contribuição Audiovisual (CAV), disse ele, é uma “vaca leiteira”, em que a RTP se amamenta e se alambaza. Os chifres, agora de forma menos gráfica, estão na metáfora e estão na conversa: é que foi o próprio Manuel Pinho quem assinou, entre outros ministros, o restabelecimento dessa CAV que agora abomina.

Mas, além dos chifres, Manuel Pinho foi àquela casa da sua desgraça fazer um nariz de palmo. Quando os eleitos do povo lhe perguntaram se era pago pelo BES enquanto oficiava de ministro, Pinho recusou responder, troçou da pergunta, disse que pareciam tê-lo convidado para jantar com o intuito de o porem a lavar o chão.

Porque não havia ele de recusar a resposta? De qualquer modo, o parlamento já está habituado a levar com chifres e narizes de palmo, cada vez que faz perguntas embaraçosas a bandidos de colarinho. Não foi o que sucedeu com Zeinal Bava, o genial gestor que diante de perguntas elementares parecia acometido de uma amnésia total?

E, numa outra categoria de inquiridos, o parlamento também se habituou a ver as suas perguntas respondidas com um encolher de ombros enfadado. Sucessivas administrações da RTP têm, nesse capítulo, dado a sua contribuição para a cultura do desprezo pelo parlamento. Foi assim que o falecido Alberto da Ponte recusou esclarecer em quanto indemnizou Nuno de Santos por um despedimento mal fundamentado; e foi assim que Gonçalo Reis recusou esclarecer se tinha feito um convite para um lugar de direcção que estava ocupado.

A sobranceria que ministros e gestores manifestam perante perguntas dos deputados é, na verdade, uma manifestação colateral e subsidiária do desprezo do capital pelos “órgãos de soberania”, e nomeadamente por esse. Disso tivemos um exemplo recente nas advertências, de dedo em riste, que os patrões, secundados pelos partidos de direita, fizeram à Assembleia da República: ela que não se atrevesse a mudar nem uma vírgula às leis laborais congeminadas na Concertação Social. E os deputados do PS que não se lembrassem de preferir os compromissos assumidos com os parceiros da “geringonça” aos compromissos assumidos com os patrões e a UGT.

É que essa conversa de o parlamento ser um órgão soberano pode ser muito bonita, mas a vida real é outra coisa. Acreditar que o parlamento consiga quebrar a omertà de um Manuel Pinho, ou acreditar que o parlamento faça cumprir promessas feitas aos trabalhadores ou aos partidos de esquerda, é uma ingenuidade, conhecida desde o século XIX como cretinismo parlamentar. Possamos nós ser tão imunes a essa doença como o são ministros, gestores e patrões.


Comentários dos leitores

leonel clérigo 27/7/2018, 11:29

A “DEMOCRACIA” dos “DEMOCRATAS”
1 - Não deixa de ser curioso notar como a nossa “Democracia” possui um bem recheado e colorido guarda-fatos. Por isso, não nos devemos admirar quando, a cada “conjuntura”, veste o “traje” adequado sem, com isso, perder o seu visual tipico “burguês”.
Se compararmos o texto da Constituição Portuguesa que saiu da Constituinte de 1976 com o da sua “subtilmente” alterada herdeira que hoje nos rege, é fácil verificar como a primeira saiu à rua para frequentar os “bairros populares” e a segunda se “aperaltou” para uns “saraus” na “Quinta da Marinha”.
As revoluções “falhadas” são assim: tudo - no essencial, note-se - regressa ao ponto de partida e apenas vigora um novo “palavreado” aldrabão para que se não diga que o “passado” regressou incólume e, com ele, a “ressurreição dos mortos”. É certo que a História “não se repete” mas, por vezes, até parece que sim. Se estou a interpretar bem, julgo ser isso o que, lá no fundo, António Louçã (1) nos diz no texto acima.
2 - À nossa actual Constituição - e como diz a anedota - também lhe pintaram os “beços” mas, nem por isso “ficou mais bonita”. Pelo contrário: com o susto que apanhou em Abril - e até levou à entrada no Tejo do USA porta-aviões Saratoga -, o velho burguês “tuga” rentista jurou vingar-se… e vingou-se. Só que se esqueceu que, na História, é vulgar as “contradições” fazerem “ricochete”, acabando por repercutir sobre quem se julga o sumo da “inteligência”: a crise económica e social do capitalismo aprofunda-se a "olhos vistos" e a burguesia capitalista portuguesa continua incapaz de fazer progredir o País.
3 - Um exemplo claro disto pode ser apreciado na “pobreza” em que resultou a Parte II - Organização económica; Titulo II - Planos, Artigos 90, 91, 92 da actual Constituição. Se a Primeira Constituição permitia a “Realização de um Plano de Médio Prazo” - dirigido na altura pela Prof.ª Drª Maria Manuela Silva, então Secretária de Estado do Planeamento -, rapidamente foi ele varrido da luz do Sol e substituído pelo “casuístico” Orçamento anual tão ao gosto da nossa “desenrascada” classe burguesa. A “anarqueirada” da “iniciativa privada” que sustenta o brilhante pensamento da burguesia lusa, voltou a tomar conta do país e os seus belos resultados estão à vista: uma "máquina produtiva" apodrecida que ameaça consolidar o nosso subdesenvolvimento “até à eternidade”.
4 - O “Arco da Governação”, o PS, PPD e CDS que são os obreiros dessa “anarqueirada liberal”, “viveram em paz” e “amizade” enquanto foi possível “criar Dívida” à custa da conversa do “importado” - mas já moribundo - Estado do Bem-Estar. A sua política da “raposa livre na capoeira livre”, parecia ser capaz de “produzir” os sonhados e “dinâmicos” - melhor será dizer “paralíticos” - “capitalistas” que se diz “fazerem desenvolver os países”, bastando para isso enfiar-lhes, “à borla”, dinheiro nas “carteiras”. Mas continua a faltar-nos o simples “bom senso”: poucos querem ver que estes capitalistas de aviário são incapazes de “desenvolver” o que quer que seja, mesmo tomando todos os dias as preciosas "pastilhas" do “filosófico” Financial Times.
5 - Estou com certa curiosidade em ver - se lá chegar… - como vai o Povo Português, na sua “generalidade”, comportar-se para o ano que vem e qual o seu nível de “saudosismo” do “Arco da Governação”. E se o voltar a pôr “no poleiro”, ficarei com a convicção que, no ADN dos lusos, mora lá uma boa dose de masoquismo…
(1) - Em dois comentários anteriores, escrevi erradamente o nome de Louçã. As minhas desculpas.


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