De noite todos os gatos parecem pardos

António Louçã — 29 Maio 2018

A vaga de movimentos populistas, nacionalistas e de extrema-direita tem tido o seu reverso na febre unitária que, um pouco por todo o lado, se declara nos arraiais da esquerda. Diante de um perigo agudo, chamemos-lhe fascista ou outra coisa, dir-se-ia que vale tudo.

Assim, a ascensão eleitoral de Donald Trump ocasionou ideias tão peregrinas como a de um jovem deputado português que preconizava o voto em Hillary Clinton como mal menor. Do mesmo modo, a passagem de Marine Le Pen à segunda volta das eleições francesas promoveu o antigo banqueiro Emmanuel Macron à categoria de baluarte antifascista. E, na Alemanha, a mais recente popularidade dos movimentos racistas anti-imigrantes e a eleição de um numeroso grupo parlamentar da AfD [Alternativa para a Alemanha] subitamente travestiram Angela Merkel com o hábito de campeã das causas humanitárias e filantrópicas.

Mesmo burocratas de grandes organizações internacionais ficam por vezes ao abrigo de justas e merecidas críticas, por uma palavra inócua que tenham plantado estrategicamente no meio dos seus discursos.

À cabeça da ONU, Guterres tratou o massacre na fronteira de Gaza como se fosse um “confronto” entre duas forças simétricas, tornando-se assim um cúmplice por omissão; mas recebe entretanto felicitações pela sua reserva face à transferência da Embaixada dos EUA para Jerusalém. Do mesmo modo, Jean-Claude Juncker, com todas as responsabilidades que tem na pilhagem dos países europeus periféricos pelos grandes bancos e no afogamento dos refugiados africanos, aparece a puxar as orelhas dos governos húngaro e polaco em nome de princípios democráticos que lhe são, na verdade, indiferentes.

É certo que, num momento de insuficiência cardíaca, se pode lançar mão de um medicamento com temíveis efeitos secundários. Mas, passado o momento de perigo, o paciente não poderá continuar a medicar-se com esse fármaco. Se o fizer, não morre do mal cardíaco — morre da cura.

Nos casos que estamos a citar nem sequer pode dizer-se que haja uma crise aguda, num dia de golpe de Estado: existe, sim, uma crise crónica, alimentada pela rotina de uma elite política serventuária da finança internacional, dos seus negócios escuros, dos seus paraísos fiscais, dos seus tráficos louvados ou execrados publicamente mas sempre tolerados. E há cada vez mais gente a sofrer os efeitos dessa crise crónica, a cair no desespero e a tornar-se presa das ilusões populistas, xenófobas ou fascistas.

Depois, vêm as surpresas eleitorais: o Brexit e a eleição de Trump foram as mais dramáticas, logo sublinhadas pela apoteótica vitória do nacionalista húngaro Viktor Órban. Mas a quase-vitória da Frente Nacional em França e o quase-governo da extrema-direita em Itália aí estão para nos lembrar que o futuro próximo nos reserva várias outras surpresas e que as viragens iminentes, ou evitadas por pouco, em qualquer momento podem reemergir como viragens consumadas.

Sob essa espada de Dâmocles, as Merkels, as Clintons, os Macrons, os Junckers desta vida aproveitam-se do cretinismo unitário para continuarem a fazer passar a sua política e para continuarem a fazer passar, agora em ritmo acelerado, novos fretes ao capital. Tomam a seu cargo a execução das medidas preconizadas pela extrema-direita, sob o pretexto de lhe arrancarem das mãos as bandeiras demagógicas. Excedem-se em xenofobia para combater os xenófobos e em darwinismo social para combater os déspotas neo-liberais.

E, dos “baluartes democráticos”, já veremos o que resta quando a pressão populista começar a chegar-lhes ao pescoço. Um dos primeiros exemplos poderá ser o da CSU, partido-irmão da democracia cristã de Merkel, sempre um pouco mais à direita, que, tudo indica, irá perder a maioria absoluta a que estava habituada na Baviera desde a Segunda Guerra Mundial. E essa mesma CSU, sempre campeã na lógica de “roubar bandeiras” aos neo-nazis, é agora a primeira a discutir se o seu parceiro para um inevitável governo de coligação deve ser o velho SPD ou antes a AfD, quebrando o tabu que na Alemanha sempre tem rodeado as alianças com a extrema-direita.

Parafraseemos, então, a máxima lampedusiana: se tudo ficar na mesma, alguma coisa irá mudar. Se nos obstinarmos em deixar tudo na mesma, seremos surpreendidos pelas mudanças. Se tolerarmos um statu quo execrável, seremos surpreendidos por mudanças ainda piores. Se nos contentarmos com a lógica do mal menor, estaremos a preparar o terreno para verdadeiros cataclismos.

Se, enfim, no meio da noite populista, acreditarmos ingenuamente que todos os gatos são pardos, e todos capazes de igualmente se assanharem contra o perigo, estaremos a ignorar o principal ensinamento da greve ferroviária francesa, que dura há quase um mês e que é o melhor exemplo de resistência às receitas neo-liberais acobertadas com o manto diáfano do antifascismo.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgonçalves 29/5/2018, 10:29

António Louçã, arregaçou as mangas e pôs com toda a clareza a situação deste clima político que muitos enjeitam para que tudo fique «realmente na mesma». O problema como se sabe é que a História corta-lhes sempre as voltas.


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