A imagem do desconcerto

Manuel Raposo — 17 Agosto 2016

Conservative Party Autumn Conference 2015 - Day 3Praticamente no dia a seguir ao desenlace do referendo, as convicções britânicas tremeram. A demissão em série de praticamente todo corpo de dirigentes políticos — sem surpresa do lado dos derrotados, com surpresa do lado dos vencedores — mostra que ninguém parece querer assumir a tarefa de negociar os termos da saída e de arcar depois com as consequências.

A divisão do eleitorado, quase meio por meio, não dá garantias de fácil governação. Também a distribuição geográfica do voto, com regiões dominantemente pelo Sim ou pelo Não, cria tensões inesperadas. Exemplos: o propósito anunciado da Escócia de permanecer na União Europeia, ou sair do Reino Unido; a renovação, por iguais motivos, da exigência de reunificar a Irlanda do Norte e a Irlanda; ou até o apelo para que a região de Londres permaneça na UE (“Está na hora de Londres deixar o Reino Unido e ficar na União Europeia”, propunha um colunista do Independent no dia seguinte ao referendo…). Ou ainda, mais recentemente, a ameaça explícita de membros da Câmara dos Lordes de bloquearem o pedido de saída, até que o eleitorado mude de ideias, e revogarem então a decisão de 23 de Junho com novo referendo ou eleições gerais, como defendeu a Baronesa Wheatcroft.

Tem interesse lembrar que tudo isto resultou de uma disputa interna no partido Conservador, em que vários opositores do primeiro-ministro defendiam a saída da UE. Para os tentar calar, e para tirar terreno à extrema-direita (sobretudo o UKIP, de Nigel Farrage), Cameron prometeu o referendo. Para acumular trunfos diante do eleitorado dito euro-céptico, negociou com a UE condições de excepção para o RU — como quem diz “eu consigo obter vantagens só para nós, sem termos de sair”. O argumento não bastou e o resultado fugiu das mãos de Cameron — mas também, aparentemente, dos demissionários defensores da saída que parecem aprendizes de feiticeiro.

Se, por hipótese, o Brexit, em vez de ganhar, tivesse perdido por pouco, manteria o seu poder de arma política pela ameaça que exerceria quer sobre a UE quer sobre o governo britânico. Tendo ganho, resta tanto aos seus mentores como aos seus opositores regatearem as consequências da saída.

Este aspecto dá conta de um desconcerto entre as camadas dirigentes, que se tornaram vítimas de actos por elas desencadeados mas de resultados inesperados. Um sinal mais da crise que abala o mundo burguês nas suas próprias instituições, para lá da crise propriamente dos negócios.

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Comentários dos leitores

afonsomanuel61@hotmail.com 17/8/2016, 12:49

Pelos vistos a preponderância da UE transformou-se num templo sagrado para muita gente, e há quem pense que se desaparecer esse misterioso templo os países que nele fazem as suas operações monetárias ficarão sem a hóstia milagrosa que os redime de todas as desventuras. A Inglaterra que é a 2ª potência económica da Europa e com a estrutura financeira mais sólida, ficaria fora da Europa de tanga como afirmou, uma velha raposa da política portuguesa, acerca do seu próprio país. O que se verifica é que nem a Europa tremeu, nem Londres ficou constipada com o resultado da referendo. Trata-se apenas de um acerto de contas com as potências dominantes e uma chamada de atenção à Alemanha que quem dirige a política inglesa são os ingleses e os assustadinhos de Londres ( com mais ou menos empolamento como aconteceu com a Escócia) já perceberam como diziam os partidários de Garibaldi na Itália que é preciso mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma. Os trabalhadores, esses desvalidos, é que continuam sem apelo nem agravo na corda bamba.


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