Bandeiras em farrapos, ‘bárbaros’ à porta

Manuel Raposo — 4 Agosto 2016

RefugiadosPaz, democratização, prosperidade — eis os slogans, tão enaltecidos desde o referendo no Reino Unido, que promovem o “projecto europeu”. A indignação evidenciada pelos europeístas pretende mostrar que os eleitores britânicos deram uma facada nas costas ao melhor dos mundos. Mas o que a realidade mostra é o exacto contrário desse melhor dos mundos.

As “décadas de paz” na Europa, desde 1945, aplicam-se apenas aos confrontos que opuseram no passado alemães, franceses e britânicos. Mas o entendimento gerado com a formação da UE foi a condição para, todos eles, em conjunto, estabelecerem primeiramente um modus vivendi comum para enfrentarem o pós-guerra (reconstrução, desenvolvimento económico acelerado, guerra fria, expansão da NATO, partilha dos recursos coloniais); e para promoverem mais tarde as guerras levadas à Jugoslávia, à Ucrânia, ao Iraque, à Líbia, à Síria, à África central, evidenciando a natureza imperialista da UE, agora como um bloco de potências associadas.

Quanto mais este rumo imperialista se acentua, menos condições há para a democracia. Não apenas no que respeita ao esvaziamento do voto como modo de expressão duma vontade colectiva, facto a que a massa responde com uma abstenção crescente. Acima de tudo, o apodrecimento das instituições e dos partidos dominantes acompanha a concentração do poder económico e político. As cliques dirigentes, os aparelhos burocráticos, os próprios órgãos eleitos (só formalmente representativos) monopolizam o poder e ditam todas as decisões — marginalizando as populações, ignorando a sua vontade e, se preciso, revogando mesmo escolhas sujeitas a voto popular.

Perante os factos da crise económica, as promessas de prosperidade transfiguram-se numa justificação do retrocesso e do empobrecimento, cujas vítimas são as classes trabalhadoras.

Tudo isto, que assume uma realidade dura, bem palpável, nos países europeus — sobretudo nos do sul e do leste — ganha expressão de catástrofe social nas regiões, de uma forma ou de outra, colonizadas pelo capital europeu.
A vaga gigantesca de populações miseráveis que afluem à UE (morrendo aos milhares pelo caminho) é o ricochete das agressões militares e da exploração desenfreada levadas a cabo pela UE numa outra periferia da Europa: árabe-muçulmana e africana.
Uma vez mais, sente-se a mão da crise mundial: a queda drástica dos níveis de crescimento degradou os preços das matérias primas a que o ocidente deita mão — o recurso económico quase exclusivo dessa periferia. Os milhões de pessoas reduzidas assim à miséria, em países alguns deles literalmente arrasados, vêm agora, muito justamente, reivindicar dos seus exploradores europeus um mínimo de condições de vida.

O efeito político entre as populações europeias é conhecido: cresce a repulsa racista, o medo xenófobo, o receio de perder empregos e privilégios, o apoio à violência policial e militar e o sacrifício das liberdades a pretexto do terrorismo.
Mas são essas mesmas populações europeias que aprovam ou condescendem com as agressões das suas burguesias — e atribuem depois às vítimas (os árabes, os muçulmanos, os refugiados, e amanhã quem quer que seja) aquilo que não têm a coragem e o discernimento de colocar no rol de crimes das suas classes dirigentes.
A grande maioria das classes médias e dos trabalhadores da Europa pensam hoje como a sua burguesia quer que pensem, e não deviam por isso admirar-se de serem alvo de acções de terror indiscriminado, que são o eco de uma guerra sem quartel que apoiam ou pelo menos toleram. (*)

A crise política e social em que a Europa está metida não resulta apenas do seu processo interno de luta de classes gerado pela concentração capitalista — é igualmente fruto do impacte na Europa da revolta social que grassa na periferia espoliada e violentada pelo capital europeu.

(*) Num artigo publicado no New York Daily Tribune em 1857, tratando da Segunda Guerra do Ópio, que os ingleses desencadearam contra a China em 1856, F. Engels comenta o seguinte, a propósito dos métodos de resistência postos em prática pelos chineses que os britânicos verberavam como sendo cobardes e bárbaros:

“Foi a política de rapina do governo britânico que provocou esta revolta geral contra os estrangeiros e a transformou numa guerra de extermínio. (…) Os chineses não conseguiriam resistir pelos meios da guerra vulgar aos meios de destruição europeus. (…) Em lugar de moralizar sobre as horríveis crueldades dos chineses, como faz a cavalheiresca imprensa britânica, mais valia reconhecer que se trata (…) de uma guerra popular pela sobrevivência da nação chinesa — com todas as suas pretensões altivas, a sua loucura, a sua douta ignorância e a sua barbárie pedante, se assim quiserem, mas de qualquer modo uma guerra popular. E numa guerra popular, os meios empregues pela nação insurrecta não podem ser medidos segundo os critérios correntes de uma guerra normal, nem segundo nenhuma outra regra abstracta, mas segundo o nível de civilização da nação insurrecta.”

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Comentários dos leitores

afonsomanuelgonçalves 9/8/2016, 15:44

Para complementar o longo artigo de Engels publicado no jornal de Nova York, informo que o Cinema Ideal exibiu no dia 30 de Setembro de 2015 enquadrado num ciclo do cinema chinês o filme A Guerra do Ópio realizado em 1997 para comemorar os dez anos da recuperação de Hong Kong à soberania inglesa que ocupou em 1842 na sequência do seu triunfo sobre a China nessa guerra. Filme que reconstitui com extrema fidelidade e realismo a violenta crueldade praticada pela poderosa armada inglesa. Depois da destruição total de Cantão os soldados massacraram impiedosamente a corajosa resistência chinesa e os bárbaros oficiais ingleses apoderam-se de jovens chinesas de forma infame. Um filme genial que revela a animalesca brutalidade dos soldados ingleses neste acontecimento.
Há ainda a salientar que neste ciclo foi também exibido o interessante filme Mao Zedong e Qi Baishi realizado em 2013 e projectado no cinema Ideal no dia 15 de Setembro. No total foram exibidos cerca de 30 filmes no Cinema Ideal e na Cinemateca Portuguesa.


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