Um grande movimento social é… “milagre”?

Manuel Raposo — 6 Junho 2016

25AcasassimO último Editorial do MV, intitulado “Mais além”, mereceu as críticas, não exactamente iguais mas convergentes, de dois leitores (ver comentários publicados). Apesar de, a nosso ver, os reparos feitos estarem deslocados do centro das questões abordadas no texto, os assuntos que levantam cremos merecerem um debate — não só porque se referem à actualidade política que estamos a viver no país, e ao modo de a esquerda a encarar, mas também porque remetem, de forma mais geral, para o papel de uma esquerda revolucionária nas actuais condições. Aqui vai pois um comentário, esperando que a discussão não se fique por aqui.

A parte final da crítica feita por Afonso Gonçalves usa a técnica do sofisma: atribui ao texto aquilo que ele não diz e depois tenta pôr a ridículo o que lhe atribui. Fácil, portanto. O leitor que repare no seguinte: foi AG que veio com a expressão “milagre” para classificar aquilo que o Editorial designa como a necessidade de “um grande movimento social” para mudar a relação de forças actual entre o capital e o trabalho.
É apelar a um milagre dizer que é preciso fazer deslocar para o campo do confronto de classes a acção política que hoje se trava no espaço limitado (física e politicamente) dos acordos parlamentares? Ou a acção de massas que se resume a greves e paralisações, necessárias, mas isoladas e de alcance curto?
É acreditar em milagres dizer que só o confronto de classes pode assustar e fazer recuar a burguesia?

Outra questão é saber se será fácil desencadear, ou se está à vista o surgimento dessa movimentação social. É evidente que não, nem isso é sugerido no Editorial — pelo que o reparo de Leonel Clérigo de que não basta “assobiar” passa ao lado da questão.

A questão, a meu ver, é outra.
A direita, o capital, sofreu no final do ano passado um revés político mas (é preciso repeti-lo) não perdeu as rédeas do poder, entendido como a capacidade para agir de forma determinante em todos os aspectos da vida do país, desde a economia à propaganda. Toda a crítica que o BE, o PCP e a CGTP fazem ao governo PS consiste em a) tentar “incentivá-lo” a resistir aos ditames de Bruxelas e da Alemanha, b) reclamar grão a grão a reposição das perdas salariais e outras dos quatro anos passados.

Ora, esta linha estará votada ao fracasso, a prazo maior ou menor, se não se forjar entretanto uma movimentação das classes trabalhadoras no sentido de inverter a relação de forças que lhes é desfavorável. Este é um dado que tem a ver com a consciência dos trabalhadores acerca da situação presente e do que precisam de fazer diante dela. Não é papel da esquerda revolucionária despertar essa consciência?

A descompressão conseguida com o afastamento da direita do governo não pode ser tomada como um ganho em si (menos ainda, definitivo), mas como uma oportunidade, estreita mas valiosa, para fazer crescer entre os trabalhadores a independência face ao poder e ao capital, sem o que aquele virar na balança de forças não existirá.
Não se trata, portanto, de discutir a velocidade a que se recuperam as perdas dos quatro anos passados; trata-se da questão política de conferir à acção dos trabalhadores capacidade de influenciar de forma decisiva o rumo dos acontecimentos.
Não é isso que vemos na via seguida pelos apoiantes parlamentares do governo, nem pela CGTP (para já não falar na desgraça, esperada aliás, da UGT).

O que o Editorial procurou dizer foi, precisamente, que é preciso que os trabalhadores se convençam de que têm de o fazer eles mesmos, e de que ninguém o fará por eles. E, da parte de quem, modestamente como nós, procura encontrar caminhos para afirmar uma esquerda revolucionária, a primeira coisa a fazer é falar nisso, escrever sobre isso. Ou seja, dizer que sem um movimento social independente do poder capitalista, nada feito.
Muito mal vai a esquerda quando o simples facto de se falar nestas coisas elementares, mas indispensáveis e primordiais, é tomado como um apelo a milagres e a utopias.

Isto é “pegar num altifalante”, como LC tenta caricaturar?
Em Outubro passado, quando a formação do actual governo ainda não era certa, dizíamos que “a questão decisiva que se coloca é como vai prosseguir a luta de massas contra a política de ataque ao trabalho”. E defendíamos que “as condições para que os trabalhadores, no actual quadro de forças, redobrem a resistência à austeridade e criem bases para repor de pé a luta contra o capital” eram o aumento da sua capacidade reivindicativa, a defesa dos seus interesses de classe e a sua independência política face ao poder.
É nesta base que acreditamos na possibilidade de renascimento de “um grande movimento social”. Não dizemos que seja fácil ou esteja à vista, mas que é por essa via. Se AG e LC acham que isto configura a invocação de um milagre, digam então quais as vias que preconizam para a afirmação de uma esquerda revolucionária — a partir do ponto em que estamos. Revelem a vossa “análise concreta da situação concreta”, como recomenda LC.

Já que as críticas entraram pelos caminhos do Além, aqui deixo alguns exemplos de “milagres”, que todos presenciámos, mas a que AG e LC parece não darem importância:
– A movimentação operária-popular de 74-75 em Portugal, que ultrapassou em muito as previsões mais optimistas que se poderiam fazer a 24 de Abril;
– As revoltas árabes de 2011, de uma ponta à outra do Mediterrâneo, desencadeadas sobre um solo fértil de ódio social às ditaduras e à exploração, mas que apanharam de surpresa todos os experientes e atentos serviços secretos (nacionais, europeus e norte-americanos);
– A longa e heróica luta dos trabalhadores gregos contra a espoliação made in UE, que o proletariado do resto da Europa, todo ele acobardado, deixou que fosse isolada para depois a declarar “irrealista”;
– As greves que alastram hoje mesmo em França e na Bélgica, enfrentando o estado de emergência, e que paralisam dois países do coração da Europa imperialista.

Não é que eu seja um crente nas virtudes dos movimentos de massas espontâneos, sobretudo pela dificuldade em serem duráveis e produzirem transformações efectivas. Mas não ver neles os sinais duma mudança social possível, e que amadurece, é cegueira política.


Comentários dos leitores

aov 7/6/2016, 15:10

Depois das grandes movimentações de massas do PREC, com ocupações reforma agrária, greves selvagens e não selvagens a classe operária de facto reinou durante esse período.
Depois do 25 de Novembro as massas trabalhadores começaram a levar na cabeça até hoje.
Havendo alguns periodos em que as massas trabalhadoras vieram para a rua protestar no 12 de março de 2011 e no 14 de Setembro de 2013 mas logo foram metidas na ordem outra vez.
Agora com o governo do PS apoiado pelo BE e PCP as classes trabalhadoras estão na expectativa do que vai acontecer.
Das duas uma, ou isto melhora em termos económicos e sociais políticos e laborais pela via do governo de esquerda o que não é provável ou isto descamba outra vez para um novo resgate as instituições do capital europeu.
Se houver um segundo resgate a direita extremista PSD/CDS entra em força com novas medidas anti-operárias e mais repressão que também continua com este governo apesar de alguma contenção.
O poder de esquerda tem isto controlado pela via dos partidos que apoiam o governo e não haverá nada de substancial no futuro próximo por parte das classes exploradas.
Primeiro à uma grande divisão entre as classes médias baixa exploradas uns nada fazem só querem futebois, concertos, fado.
Os mais pobres também não percebem o que está acontecer e quem percebe nada pode fazer por somos poucos e também estamos bastante divididos.
Neste sentido é deixar correr o rio, até que as classes exploradas percebam que são parte da solução ou do problema.

leonel clérigo 9/6/2016, 14:38

NOTA PRÉVIA
Coloquei em 1 de Junho último um comentário - “Fazer Bailar o Sol” - no Editorial “Mais além” do Mudar de Vida (MV) publicado no Sábado, 21 Maio, 2016. No dia 6 de Junho, anuncia Manuel Raposo (MR) pretender abrir um “Debate” com o Título “Um grande movimento social é… “milagre”?” e onde são referidos alguns aspectos do meu comentário.
Devo para já relembrar que o que escrevi ali pretendia ir directo ao Jornal MV e não ao “redactor” MR ou a outro qualquer da “Equipa de Redacção”. Posso supor que este colectivo delegou em MR a “função” de “vir à liça” abrir o Debate mas, desconheço isso. Seja como fôr, o meu “Debate” é com MV e seus resultados e porque quero que isto fique claro não pretendendo “personalizar” uma coisa que o não deve ser, vou “saltar por cima” de MR indo em linha recta a MV e ao seu Estatuto Editorial.
A TEORIA e a PRÁTICA de MV.
1 - A critica que faço a MV tem por base a comparação entre os seus “propósitos” anunciados no Estatuto Editorial - e até no Manifesto apesar deste estar já desactualizado e com “erros de análise” impostos pela “Vida” - com a sua “acção” ao longo do tempo. Em minha opinião, o MV está hoje e como é vulgo dizer-se, ameaçado de “burocratização”, em uma acção “rotineira” e sem “viço”. Julgo que isso é patente no discurso repetitivo onde os “princípios” são continuamente reproduzidos até à exaustão, impedindo que as contradições que vão desfilando na sociedade sejam objecto de análise critica adequada. Não há, no MV, “pedrada no charco” como era suposto haver num “jornal” com a “linha” de MV. É preciso assumir que, tal como “não há estrada real para a ciência”, também não há “estrada real” para a “Revolução”. Esta só se demonstra na Prática e a acusação de “Reformismo” torna-se ridícula quando corre o perigo de ser obra de esforçados mas “treinadores de bancada”.
2 - Os 7 pontos do Estatuto Editorial (EE) do MV e se o estou a ler bem, propunha nos 3 primeiros uma “estratégia” e nos 4 últimos uma “táctica”. E têm vindo a ser cumpridos? Qual o resultado? A acreditar no número de “comentários” - desconheço o número de “visitas”… - a pobreza é “franciscana” o que indica tratar-se o MV de um “grupo fechado”, isolado. Mas quem diz “pensar” em termos marxistas, precisa muito mais. E isso só se consegue arregaçando as mangas e “insuflando sangue novo” misturando-o com o “velho” coisa que, aliás, o próprio EE prevê (EE ponto 5)
3 - Os “princípios” são coisas importantíssimas, decisivas, mas servem para orientar e enquadrar a acção exigindo “desdobramentos”. O MV alinhou os seus “princípios” (EE ponto 1) mas não se pode ficar por aí. Diz-se, por exemplo no EE, que o MV se propõe também “…romper o monopólio da informação oficial“ (EE ponto 3). Ora, na situação de grave crise que a sociedade portuguesa atravessa e ameaça já a sua continuidade, poderia o MV abalançar-se a - ou tentar… - equacionar “as contradições principais” que a dilaceram. Equacionar também os bloqueios reais impostos por uma burguesia lusa decrépita e colonizada pelo G7 que vem reproduzindo - há dois séculos e sem resultados - a enganosa ladainha do “agora é que isto vai”, do Portugal que “vai crescer” como nunca alguém imaginou.
O MV pouco diz sobre a aldrabona Comunicação Social capitalista lusa, apesar da intenção de “…romper o monopólio da informação oficial” (EE ponto 2). Não é coisa menor “descascar”, por exemplo, porque razão a Comunicação Social passa agora e a toda a hora nos écrans e com honras de Primeiro-Ministro, o colonizado analfabeto e “estadista de bairro” Passos Coelho, ou porque a Comunidade Europeia põe os portugueses debaixo de fogo, como fez aos gregos, com a aprovação do rentista Capital Financeiro português.
O MV, que afirma pretender ligar-se “…à vida do país e do mundo” (EE ponto 3), pouco nos diz sobre o que se passa no “país” e no “mundo”, salvo como “mote” para as suas ”declarações de princípio”. Porquê?…É o caso do que se está a passar em França com a luta importantíssima e dura da classe trabalhadora contra o Capital francês em crise profunda e onde a “nossa” capitalista Comunicação Social silencia, o mais que pode, em “solidariedade” patronal…
O MV - diz o EE ponto 5 e numa estratégia de “expansão” correcta - “…só pode ter êxito se for apoiado por uma rede de grupos locais”. E tudo parece indicar os fracos resultados desta intenção…que mais parece ter sido posta no “tinteiro”.
4 - Não me vou “alargar” mais dado que não é meu propósito “dar corda” a este tipo de “debate”. O que escrevi acima julgo que chega para esclarecer o meu objectivo principal: tentar “sacudir” o pachorrento MV para que a sua redacção cumpra, pelo menos, as intenções bem expressas no Estatuto Editorial.

afonsomanuelgonçalves 10/6/2016, 10:52

Um pequeno comentário inofensivo e levemente sarcástico provocou uma tempestade ideológica no director deste jornal.
Para aliviar a tensão e evitar polémicas desnecessárias digo que o pressuposto de identificar alguém que acredita em milagres não consta no meu comentário. Por isso não existe qualquer sofisma ou eufemismo na argumentação produzida. Ao usar a frase expressa no editorial que transcrevo: «a via é criar nos trabalhadores a certeza de que só a força de um grande movimento social pode fazer a burguesia temer os efeitos de uma confrontação de classes» (sic).
Está explícito na minha crítica que no actual contexto da luta de classes em Portugal só através de um "milagre"isso seria uma real possibilidade e por isso os exemplos dados ao defender tal hipótese são completamente extemporâneos, quer se trate do 25 de Abril ou do acto eleitoral falhado na Grécia.
Lenine não se cansou de enunciar como fundamental a existência da vanguarda da classe operária para fazer triunfar a revolução com cabeça tronco e membros como implicitamente Leonel Clérigo o faz no seu comentário ao editorial.
Para terminar pergunto recorrendo à afirmação feita por M.R., afinal onde está a cegueira política?

mraposo 10/6/2016, 20:05

Caro leitor AOV:
Concordo em geral com a análise que faz do estado do movimento popular e com os riscos que aponta acerca da situação política. Mas precisamente porque existe o risco de a direita, como você diz, voltar a cavalo de um novo resgate (ou simplesmente dum declínio económico que arrase as esperanças que agora se forjaram) — precisamente por isso não posso concordar com o remate do seu texto: “deixar correr o rio até que as classes exploradas percebam que são parte da solução...”.
A meu ver, as classes exploradas só perceberão que são a solução da situação se tiverem diante de si respostas políticas que o mostrem. E para que tais respostas existam a esquerda revolucionária tem de fazer por isso — não acredito que surjam de geração espontânea. Sem isso, há o sério risco de ser a direita, e a direita cada vez mais extrema, a arregimentar as massas populares.
Manuel Raposo

mraposo 10/6/2016, 20:10

Caro Leonel:
1. Passo por cima da tua nota prévia porque não lhe vejo sentido. Debates com o MV mas não com os redactores do MV, que são quem efectivamente escreve? Não percebo.
2. Que tem o que agora dizes do MV a ver com o assunto do Editorial, motivo da crítica que fizeste e da minha resposta? Nada. Largaste simplesmente o debate da questão política para te dedicares a um ataque ao MV por junto.
3. Em todo o meu comentário evitei responder ao tom de chacota da tua crítica, centrando-me apenas nos aspectos políticos. E propus que apresentasses o teu ponto de vista sobre a situação política em debate. A volta que dás ao assunto, trazendo à baila o Estatuto Editorial do MV, só tem o sentido de uma recusa ao debate daquela questão concreta.
4. Com o Estatuto Editorial do MV na mão, mostras o que devíamos fazer e não fazemos. Conhecemos as nossas fraquezas, que estão à vista. É-te fácil, portanto, apontar inúmeras falhas. Sabes qual a razão principal? — falta de forças. Nos idos de 2006-2007 muitos se entusiasmaram com a ideia de criar o MV, e debateram acesamente o Estatuto Editorial que agora invocas. Mas poucos foram os que ficaram (e não estou a dizer que foram os melhores).
5. Não queres “dar corda” a “este tipo de debate”, dizes tu. Mas qual é o tipo de debate que te agrada — aquele em que tu criticas e os criticados não respondem? Queres “sacudir o pachorrento MV”, dizes tu ainda. Muito bem. Foi por aceitarmos a sacudidela que respondemos à tua crítica. Mas resolveste mostrar-te ofendido. Queres sacudir mas não gostas de ser sacudido — é isso?
6. Já reparaste que com esta postura de parte ofendida estás a matar o debate político — e que assim a esquerda não vai a lado nenhum?
Ao dispor,
Manuel Raposo


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