O jogo do empurra sobre os refugiados

António Louçã — 19 Setembro 2015

refugiadosDiz-se do drama dos refugiados que é “novo”, que é “inédito”, que atinge proporções “nunca vistas”. Há sempre na História alguma coisa de novo. Mas quem não aprendeu alguma coisa com o que está para trás arrisca-se a imaginar novidades em cinemas onde apenas está a passar um filme muito visto. E, chocado com o sensacionalismo das coisas “nunca vistas”, arrisca-se a deixar passar despercebidos os ingredientes verdadeiramente novos da situação que temos pela frente.

Velho, quase tanto como o mundo, é este jogo do empurra entre as principais potências ocidentais: em Julho de 1938, reuniu-se em Evian a conferência convocada pelo presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt para discutir a situação dos judeus que fugiam das perseguições nazis na Alemanha e na Áustria recém-anexada pelo nazismo. Alguns convidados, como a Itália fascista e a URSS estalinista recusaram-se a comparecer. Outros governos, como os de Portugal e Espanha, não foram convidados, tendo em conta a sua óbvia inutilidade.

Outros ainda – a maioria, e essa é a mais interessante para a comparação que agora nos importa – estiveram presentes e desmultipliciaram-se em declarações filantrópicas sobre o destino dos perseguidos. Era urgentíssimo, diziam, que a “comunidade internacional” fizesse alguma coisa por ele. Eram elementaríssimos, acrescentavam, os princípios universais que obrigavam a dita comunidade de países “civilizados” a tomar iniciativas imediatas.

Pequeno problema, e aí Evian torna-se igual a Bruxelas: cada um entendia que isso era, principal ou exclusivamente, tarefa dos outros. E não só dos outros parceiros imperialistas, como sobretudo dos povos coloniais. Assim, o Reino Unido nunca considerou acolher judeus em número apreciável nas ilhas britânicas, mas tão-somente na Palestina, acabando finalmente por desistir da ideia por recear que alguma precoce Intifada viesse perturbar o seu domínio na região; o mesmo para a França, em relação à Argélia; e o mesmo para os Estados Unidos, em relação à América Latina.

Onde a Alemanha nazi pensava despachar os judeus para Madagáscar, as potências ocidentais pensavam despachá-los para outros territórios periféricos ou coloniais.

Passados dois anos, com a invasão da França, começaram a ser acolhidos judeus nos EUA a conta-gotas, com quotas de vistos limitadas. Mas havia sempre uma discussão de números e não uma prioridade do tal princípio universal: atribuir o asilo a quem foge do genocídio – pela guerra, pela fome, por todo o tipo de catástrofes – sejam esses refugiados quem forem e sejam eles e elas quantos forem.

Já vimos então tudo o que a presente crise dos refugiados nos apresenta? Não há então nenhuma novidade no que está a passar-se? Não há nenhuma novidade nos hipócritas e cínicos mecanismos de comportamento das potências imperialistas. Há, sim, uma novidade objectiva: o que está a passar-se agora é pior que aquilo que sucedia com os judeus no momento da conferência de Evian e mesmo no momento da invasão nazi em França.

É que os judeus eram nesse momento brutalmente perseguidos, expropriados, humilhados ou marginalizados nos países sob domínio nazi. Não tinham começado ainda as deportações e, menos ainda, os gaseamentos de Auschwitz. O genocídio que já então estava nas primeiras fases da sua marcha, ainda, sobretudo um genocídio económico, social e cultural. Os refugiados que hoje nos batem à porta já sofrem também um genocídio físico. Mas os pomposos senhores de Washington, Berlim e Bruxelas continuam a ser rápidos para destruir países inteiros (Afeganistão, Iraque, Líbia) com as suas invasões e, por outro lado, absolutamente inoperantes para fecharem a caixa de Pandora que abriram. Isso, que nada mudou, faz toda a diferença diante de um genocídio físico em fase muito mais avançada do que estava o Holocausto em 1938 ou mesmo em 1940.


Comentários dos leitores

leonel clérigo 20/9/2015, 18:33

Como bem diz António Louça sobre o passado, sem dúvida que “O morto tolhe o vivo” (Marx). Efectivamente, se o passado se “ausenta” de nós, ficamos como o amnésico que, ao ficar “sem saber donde vem e por isso quem é”, não descortina “para onde deve ir”. E porque “o morto tolhe o vivo”, há que aclarar, apesar de ser coisa "menor", se as razões da “ausência” em Evian da “Itália fascista” e da “URSS Estalinista” foram “iguais”, para não ficar tudo desfeito no mesmo caldeirão da sopa “humanitária” e a História não nos servir para nada. E porque também “o morto tolhe o vivo”, é preciso ter presente a declaração de guerra económica – logo em 1933 - que os líderes sionistas da comunidade judia mundial– defensores da formação do Estado de Israel - declararam à "Nova Alemanha”: proibição de consumo dos produtos alemães, numa altura em que o Governo Americano e até mesmo os líderes judeus na Alemanha, estavam a aconselhar prudência na forma de como lidar com o novo regime de Hitler.

afonsomanuelgonçalves 30/9/2015, 12:32

Esta pequena sinopse da história pré-nazi ( e não só) de Leonel Clérigo deixa algumas pistas de reflexão para os intelectuais da actualidade que deveriam reflectir o seu "árduo" trabalho teórico e histórico que têm feito ao longo dos últimos anos. Na maioria tem-se assistido a uma dança frenética de saltapocinhas que possivelmente nunca até hoje se verificou. Quem estuda e lê, com atenção a literatura de Máximo Górki, por exemplo, verifica a grande diferença que existe entre um rigoroso, coerente e consistente escritor que aborda a política, literatura, religião e a vida humana em todas estas vertentes com uma honestidade intelectual que já não existe nos nossos dias fica, com certeza, com a consolação de que apesar de tudo ainda vale a pena acreditar em qualquer coisa...


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