Para que não se percam os frutos da civilização

Manuel Raposo — 24 Junho 2012

Realizou-se de 3 a 5 de Maio deste ano, na Faculdade de Letras de Lisboa, um congresso designado Marx em Maio – Perspectivas para o século XXI, por iniciativa do Grupo de Estudos Marxistas daquela Faculdade. Foi uma importante ocasião para trazer o pensamento marxista a debate, sobretudo considerando a crise mundial que o capitalismo atravessa e a necessidade de reerguer a luta anticapitalista.
A intervenção que tive oportunidade de fazer será publicada por partes. Nesta primeira parte lembra-se como Karl Marx encarava o combate às contradições do capitalismo e defende-se a ideia de que a actual crise é uma radiografia do estado terminal a que chegou a civilização burguesa. Limitá-la às suas manifestações económicas é um dos vícios que bloqueia o crescimento de um movimento revolucionário.

“Derrubar a própria base das contradições”

Escolhi como título desta intervenção a frase “Para que não se percam os frutos da civilização” que é parte de um parágrafo de uma conhecida carta de Karl Marx a Pavel Annenkov (de 1846) em que Marx dá a sua opinião acerca de Proudhon, antes ainda de ter escrito a Miséria da Filosofia.
O parágrafo inteiro diz o seguinte:

“Os homens nunca renunciam ao que ganharam, mas isso não quer dizer que não renunciem à forma social em que adquiriram certas forças produtivas. Muito pelo contrário. Para não serem privados do resultado obtido, para não perderem os frutos da civilização, os homens são forçados a mudar todas as suas formas sociais tradicionais, a partir do momento em que o modo do seu comércio já não corresponde às forças produtivas adquiridas.” (1)
(“Comércio” no sentido lato de relação, transacção)

Esta afirmação da necessidade histórica das revoluções sociais é acompanhada de uma crítica impiedosa ao desejo de Proudhon de conciliar as contradições do sistema capitalista em vez de pensar “no derrube da própria base dessas contradições”. E Marx comparava essa tentativa de conciliação ao que sucedera nas vésperas da revolução francesa de 1789, afirmando os seguinte:

“No século XVIII uma multidão de cabeças medíocres estava ocupada em encontrar a verdadeira fórmula para equilibrar as ordens sociais, a nobreza, o rei, os parlamentos, etc., e no dia seguinte já não havia rei, nem parlamento, nem nobreza. O justo equilíbrio entre esse antagonismo (conclui Marx) era o derrube de todas as relações sociais, que serviam de base a essas existência feudais e ao antagonismo dessas existências feudais.”

O papel do comunismo marxista

Marx mostra aqui como são inúteis as tentativas de conciliar os termos irredutíveis das contradições sociais quando elas chegam ao seu ponto culminante – isto é, quando as sociedades se abeiram do seu termo histórico.

A ideia que trago a este debate é a de que a actual crise capitalista é uma radiografia do estado terminal a que chegou a civilização burguesa. De que não estamos a passar apenas por mais um ponto baixo de mais um ciclo do processo produtivo, mas estamos a viver a falência do sistema produtivo capitalista que chegou a um limite, que entrou na sua fase senil.
Com isso está em causa todo o edifício social que assenta nesse sistema produtivo. As contradições em que o capitalismo está enredado não podem ser resolvidas dentro dele próprio; só uma revolução social o pode fazer da única maneira viável: pondo fim às relações sociais capitalistas.
Consequentemente, a acção do comunismo marxista, tem de ser guiada por este propósito se quiser ter um papel na transformação social que está em gestação.

Passo aos argumentos.

Porque não cresce o movimento revolucionário?

O discurso dominante sobre a crise procura encerrar o problema numa espécie de círculo de giz “económico”. É a tentativa de absolver o sistema social capitalista. Na verdade, o que está em causa não é a “economia” (que é uma coisa que em si não existe), mas a economia capitalista; e a crise não é dos negócios, mas de uma civilização inteira.
Mas esta restrição da crise ao “económico” domina. E domina de tal modo que penetrou, ainda que sob formas modificadas, o senso comum e mesmo a esquerda.
O círculo de giz funciona.

Funciona, por exemplo, quando se trata o neoliberalismo como uma deriva mental duma fracção da burguesia responsável pela deriva material do sistema, aceitando a ingenuidade de pensar que uma qualquer ideologia possa alterar as leis de funcionamento do capitalismo;
Ou quando se atribui à globalização e à financeirização do capital a origem da presente crise mundial, em vez de ver nelas recursos a que o sistema deitou mão para atenuar e adiar a crise;
Ou ainda quando se cai na ilusão de que existem medidas políticas (nomeadamente medidas de política económica) que podem solucionar os problemas sem tocar no quadro do próprio sistema capitalista, esquecendo que os problemas existem e avolumam-se precisamente porque esse quadro se vai mantendo.

Creio estar aqui boa parte da razão pela qual o movimento revolucionário pelo socialismo não dá sinais de crescer, apesar da decadência do capitalismo. É este a meu ver o nó da situação: um movimento revolucionário bloqueado no meio de uma crise geral do sistema capitalista.

(Continua)

Notas
(1) Carta de Karl Marx a Pavel V. Annenkov, Marx-Engels Obras Escolhidas, Tomo I, p. 546. Edições “Avante!”, Lisboa – Edições Progresso, Moscovo, 1982.
(2) Idem, p. 553.


Comentários dos leitores

J.M.Luz 25/6/2012, 12:14

Sendo as questões politicas em presença de enorme importância e dado que qualquer comentário a fazer será sempre insuficiente, sugiro ao M.Raposo que organize colóquios afim de se poder discutir e aprofundar as questões levantadas.
Abraço
JMLuz

Ismael Pires 26/6/2012, 18:12

Deixo aqui este artigo porque parece que em Portugal se estão a perder os frutos da civilização.
portugal en passant - III
O governo de Passos Coelho e da Troika completou no dia 21 de Junho o seu primeiro aniversário. No curto espaço de um ano tudo piorou em Portugal. O desemprego aumentou praticamente para o dobro e atinge proporções verdadeiramente alarmantes entre os mais jovens.
Os salários reais sofreram uma diminuição drástica, a qual, só no caso dos funcionários públicos, ronda os 25%. Os dois meses de salários que foram eliminados pelo actual governo acrescentam-se aos cortes que já tinham sido iniciados em Janeiro de 2011 pelo governo anterior. As pensões e reformas levaram também um corte que proporcionalmente não deve ser muito diferente do dos salários.
Estes cortes salariais num país onde grande parte da população depende directa ou indirectamento do Estado tiveram efeitos devastadores sobre a economia e a procura interna. A forte contração da actividade económica começou a registar-se logo no segundo semestre de 2011 após a entrada em funções do actual governo e inicio das medidas de austeridade. O fecho de empresas em Portugal acelerou na segunda metade de 2011. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, desapareceram 32.989 empresas em 2011. Nos primeiros meses de 2012 o cenário não deixou de se agravar. É uma espiral recessiva que gera cada vez mais e mais desemprego.
Sectores como o da construção civil que viviam sobretudo do investimento público do Estado agora fortemente diminuído contribuem também para o aumento diário das taxas de desemprego. O número de desempregados no setor da construção poderá atingir, até ao final do ano, cerca de 25% do total do desemprego em Portugal. Serão mais de 250 mil trabalhadores da construção civil no desemprego, numa perspetiva catastrófica de alguns sindicatos da construção civil.
As reformas que o governo está a implementar com as restruturações no sector da saúde, da educação e da justiça vão provavelmente fazer sair do sistema até ao fim do ano muitos funcionários públicos. Na educação os professores contratados podem praticamente desaparecer e vir a engrossar a fileira de desempregados. As agregações de escolas poderão deixar cerca de 25 mil professores sem emprego, já a partir do ano letivo 2012/2013.
Os direitos de quem trabalha foram também profundamente atacados pelo Governo de Passos Coelho e da Troika. O novo Código do Trabalho praticamente liquida a contratação colectiva, aumenta o horário de trabalho, baixa salários e limita ainda mais o direito à greve, liberalizando mais os despedimentos e procurando eliminar os poucos direitos de que ainda dispõem os trabalhadores.
É um cenário perfeitamente catastrófico em termos sociais. Os portugueses estão já a poupar até nas coisas mais básicas como são a saúde e a alimentação. O acesso aos cuidados de saúde tornou-se mais difícil e mais caro, muitos serviços encerraram ou encurtaram horários e as taxas moderadoras e as dificuldades no transporte de doentes fizeram o resto. As consultas e atendimentos no Serviço Nacional de Saúde baixaram quase para metade. A venda de bens alimentares nos supermercados está em queda há 18 meses consecutivos.
Não obstante toda a contenção e austeridade a dívida pública disparou para valores nunca antes alcançados, passando de 95% do Produto Interno Bruto para quase 120%, percentagem essa que continua a subir diariamente numa espiral incontrolável. O défice do Estado rondou os 2700 milhões de euros nos cinco primeiros meses do ano, mais 35% do que em igual período do ano passado, fruto não só da queda da receita fiscal, mas também do aumento da despesa. Novas medidas de austeridade estão na calha e os governantes já começaram a falar dessa possibilidade.
Os movimentos sociais que sempre foram débeis em Portugal pouco conseguem fazer diante desta avalanche. Mesmo assim os trabalhadores do sector ferroviário conduzem uma greve que tem paralisado a circulação de comboios a 100% nos dias feriados do mês de Junho. Os controladores aéreos têm também marcada uma paralisação para os próximos dias e pela primeira vez em Portugal a conservadora Ordem dos Médicos junta-se aos dois Sindicatos Médicos convocando dois dias de greve para o próximo mês de Julho. A luta é contra a contração de médicos ao mais baixo custo feita por empresas de trabalho temporário com o aval do governo.

João Medeiros 4/7/2012, 21:02

Vão ter de se perder ... para que o "parto" de uma nova sociedade seja possível!
O movimento revolucionário está bloqueado, porque (não só, mas também!) os comunistas marxistas se têm revelado incapazes de propor a esse movimento um programa de ruptura com o capitalismo.
Esse é o primeiro passo a dar. Ousemos dá-lo.


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