Síria: um testemunho de Damasco

Bawsat / MV — 18 Março 2012

A campanha dos EUA e da União Europeia contra a Síria está no auge. Cientes do que sucedeu no caso recente da Líbia com a aprovação de sanções pela ONU, a China e a Rússia decidiram desta vez não ir atrás de norte-americanos e europeus, impedindo assim uma intervenção militar com o aval das Nações Unidas. Mas as potências imperialistas não desistem e fazem tudo para impulsionar a acção armada contra o regime sírio, concretamente fornecendo material de guerra aos rebeldes. A par disso, levam a cabo a indispensável demonização do regime, tal como nos casos antecedentes do Iraque e da Líbia. O testemunho seguinte, uma carta enviada de Damasco e publicada no blogue Spectrum, lança alguma luz sobre o caso.

“A desorientação domina. Há uma falta de objectividade flagrante de todos os lados, uma guerra mediática suja, especialmente do lado daqueles que controlam a informação e os meios de comunicação mundiais (capitais norte-americanos, europeus e do Golfo árabe). A concentração da propriedade das sociedades de informação internacionais explica porque é que a imprensa livre tem desaparecido pouco a pouco e a margem de liberdade de expressão não pára de recuar.

Sinto que esta aliança política/económica/mediática conseguiu, com a sua propaganda, meter-nos numa situação de embaraço moral. Estamos no centro de um bombardeamento mediático intensivo que nos força a enveredar por uma posição ou por outra, sem a menor verificação dos factos ou informações, debaixo da ameaça de sermos catalogados como participantes activos na matança das crianças sírias.

Creio que o que se passa actualmente assemelha-se ao cenário que foi instaurado antes da ocupação do Iraque em 2003. É a mesma política de diabolização, a propagação de valores morais (democracia, liberdade, protecção dos civis…) e a sua aplicação selectiva. O modelo é exactamente o mesmo que no Iraque. Mas na Líbia e agora na Síria, constato que houve um ajustamento local inteligente, mais “arabizado”.

Quanto a mim, continuo em Damasco, continuo a fazer ida e volta todos os fins de semana ao Líbano. A vida em Damasco já não é a mesma que tu conheceste. Vemos que as pessoas não se sentem em segurança como antes. Os cafés e mesmo as ruas estão vazias a partir das 22 horas. Temos algum receio de sair de noite, mesmo no centro da cidade que era bastante calmo antes dos atentados. O ambiente em Damasco foi envenenado depois dos atentados suicidas, mas, ainda assim, é relativamente melhor que noutras regiões.

O bairro onde vivo, depois de tu teres cá estado, continua calmo. A maioria dos habitantes são drusos e cristãos. No entanto, há alguns subúrbios mais agitados. É aí que vivem as camadas da população mais desfavorecidas, onde há uma islamização maior e onde os cheiques e a corrente islâmica são mais influentes e seguidos. Aí é onde a situação é mais tensa, constato este panorama, nomeadamente um sectarismo agudo em que domina um sentimento “anti-alauítas”.

As mesquitas e os média – sobretudo Al-Jazira, Al-Arabiya e canais salafistas que propagam os fatawas (decretos religiosos), a takfir (a infidelidade) de alauítas e xiítas – não mostram as incitações ao ódio e à violência, nem as denunciam. Ao contrário, alimentam e amplificam este sentimento. O regime e os alauítas são diabolizados, transformou-se o desconforto dos pobres e as suas aspirações por uma vida melhor em rancor e ódio contra os alauítas.

Sobre a situação em Homs : há uma grave escalada de sectarismo (sunitas-alauítas), parecendo cada vez mais uma guerra civil. A cidade é constituída por uma mistura de confissões (sunitas, alauítas, cristãos…). A maioria são sunitas, os alauítas representam apenas um quarto da população. Mais uma vez, a situação parece-se com a do Iraque após a ocupação pelos americanos em 2003 (conflito entre xiítas e sunitas).

Muitos acontecimentos ocorreram nos últimos meses para chegar a esta grave situação de carnificina quotidiana em Homs. Estamos longe da autodefesa contra a repressão de Estado. Neste exacto momento, estamos numa situação de guerra. Homs é hoje aquilo que foi Faluja no Iraque ou [Grozni] na Chechénia para os jihadistas (combatentes islâmicos). Ninguém pode negar a crueldade dos serviços sírios de segurança. Centenas de civis parecem ter sido mortos pelas forças armadas. Mas temos também que reconhecer que a violência é oriunda dos vários lados da barricada e é por isso que também há um número elevado de soldados mortos (perto de 2 mil). A teoria propalada de que são soldados mortos pelo próprio regime, por se terem recusado a abrir fogo contra os civis, é uma pura mentira. É uma propaganda mediática.

Em Homs, a violência resulta tanto do exército e serviços de segurança, como dos combatentes islâmicos, e dos militantes sunitas e alauítas. Os média mostram apenas um lado da realidade, é sobretudo a imagem que querem veicular de um regime armado que mata civis e manifestantes pacíficos. Por exemplo, estima-se que perto de 1000 alauítas foram massacrados/executados em Homs pelas milícias jihadistas ou anti-regime. Os média contam e fotografam essas vítimas como civis mortos pelo exército sírio. A maior parte dos 200 cadáveres estropiados e mostrados pendurados nas ruas antes da última reunião da ONU eram alauítas. Estes cadáver foram “armazenados” e centralizados para essa “filmagem”. Os dias que precederam a reunião foram os dias mais pacíficos em Homs, toda a gente conhece a falsificação.

É a mesma política de propaganda mediática e cobertura selectiva de acontecimentos (focalização sobre alguns factos, dissimulação ou mesmo fabricação de outros) alternados com as declarações políticas internacionais que lembram o célebre discurso de Colin Powell na ONU sobre as armas de destruição massiva no Iraque e que veio a revelar-se uma pura fabricação enganosa.”


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