Ironias da crise

Jorge Beinstein / MV (*) — 16 Março 2012

Pegando em dois factos aparentemente sem relação – a revolta árabe de 2011 e o desastre nuclear de Fukushima no Japão – o economista Jorge Beinstein mostra que ambos decorrem da corrida desenfreada do capitalismo industrial às fontes de energia. Num caso, condenou o Japão a atapetar o seu território, de alto risco sísmico, com uma multidão de centrais nucleares sem controlo eficaz; noutro caso, converteu o mundo árabe numa área subdesenvolvida consagrada à extracção intensiva e ao transporte de petróleo.
“O mundo burguês anterior aos colapsos económicos de 2007-2008”, diz o autor, “encaminhava-se eufórico e triunfalista para um variado leque de crises (energéticas, financeiras, sociais, ambientais, políticas, etc.) cuja convergência dava sinal da proximidade de um ponto de inflexão decisivo, de passagem rápida para uma época turbulenta”. É desta mudança que Beinstein procura captar o sentido.

Fim do crescimento global, decadência do sistema

Por baixo da cadeia energética que liga a rebelião árabe à crise nuclear japonesa estende-se uma trama que explica de modo mais amplo ambos os fenómenos – trata-se do processo geral de declínio do capitalismo como sistema universal.

Do ponto de vista das relações entre o sistema económico capitalista e a sua base material, a depredação como comportamento central, dominante, do sistema começou há poucas décadas a substituir a reprodução. Na realidade o núcleo cultural predador existiu desde o grande arranque histórico do capitalismo industrial (nos finais do século XVIII, principalmente em Inglaterra) e, mesmo antes, durante o longo período proto-capitalista ocidental. Marcou para sempre os sistemas tecnológicos e o desenvolvimento científico, a começar pelo seu pilar energético (carvão mineral primeiro e depois petróleo) e uma ampla variedade de explorações mineiras de recursos naturais não renováveis. Essa exacerbação predadora é um dos traços distintivos da civilização burguesa em relação às civilizações anteriores; no entanto, durante as etapas de juventude e maturidade do capitalismo a depredação estava subordinada à reprodução ampliada do sistema.

Mas, a partir dos finais dos anos 1960, começos dos de 1970, produziu-se uma desmesurada expansão do saque, que não conseguiu superar a crise de sobreprodução iniciada nesse momento, tornando-a apenas crónica – mas controlada e amortecida. Uma das bases desta nova etapa foi a exacerbação da pilhagem de recursos naturais não renováveis e a introdução em grande escala de técnicas que possibilitaram a super-exploração de recursos renováveis, violentando, destruindo, os seus ciclos de reprodução (por exemplo na agricultura). Isto ocorria quando vários desses recursos (por exemplo os hidrocarbonetos) se aproximavam do seu nível máximo de extracção.

Foi uma fuga para a frente “irracional” do ponto de vista do longo prazo do capitalismo em geral, mas perfeitamente “racional” se vista a partir dos interesses específicos das empresas de petróleo, da indústria automobilística, do complexo militar-industrial, na verdade do grosso do sistema económico global, em que predominavam ciclos de negócios cada vez mais curtos, cada vez menos capazes de absorver prolongados períodos de maturação dos investimentos. A avalanche da mentalidade do curto prazo (financeirização cultural do capitalismo) esmagou qualquer possibilidade de planeamento de longo prazo de uma possível reconversão energética.

O tecto energético com que a reprodução do capitalismo deparou converge com outros tectos de recursos não-renováveis que, em breve, vão afectar um amplo espectro de actividades de mineração; a isso soma-se a exploração selvagem dos recursos naturais renováveis. Apresenta-se assim um quadro de esgotamento geral de recursos naturais a partir do sistema tecnológico disponível, mais concretamente do sistema social e dos seus paradigmas, isto é, do capitalismo como modo de vida.

Por outro lado, a crise de recursos naturais, inseparável do desastre ambiental, converge com a crise da hegemonia parasitária. Nas primeiras décadas da crise crónica de superprodução potencial, o processo de financeirização impulsionou, especialmente nos países ricos, a expansão do consumo, a realização de grandes projectos industriais, de subvenções públicas à procura interna e de grandes aventuras militares imperialistas, mas no final as euforias dissiparam-se para revelar enormes montanhas de dívidas públicas e privadas. A festa financeira (que teve pelo caminho muitos acidentes) converte-se agora num limite financeiro que bloqueia o crescimento.

Já desde a década de 1970, mas acentuando-se nos anos seguintes, o crescimento económico da zona imperialista do mundo exigiu doses crescentes de droga financeira para continuar a expandir a sua economia, embora a taxas tendencialmente decrescentes; mas, desde a eclosão da crise em 2007-2008, a mega-bolha especulativa mundial (espaço de todas as bolhas financeiras) entrou numa fase de saturação – alguns dos seus componentes ainda crescem e outros são deflacionados, mas o conjunto da massa parasitária irá estagnar e anuncia o seu próximo declínio. O (hiper)desenvolvimento do parasita depende do dinamismo da sua base estrutural (as empresas, os consumidores, o Estado), cuja capacidade de endividamento não é infinita e é altamente sensível à sua crise. A expansão financeira vai encontrando o seu tecto histórico, as emissões de moeda podem dar um pouco de ar a crescimentos puramente nominais e até mesmo a alguns booms efémeros, mas o seu destino está selado. Trata-se de um duplo tecto: o que todo o sistema no seu conjunto estabelece para o desenvolvimento financeiro, e o que este último coloca à sua base estrutural (o capitalismo não pode crescer asfixiado pelo seu parasita financeiro, o qual, por seu lado, se debilita porque a sua “vítima” começa a perder a capacidade de o alimentar).

Em suma: a crise crónica de superprodução iniciada há quatro décadas transforma-se agora numa crise geral de subprodução, na incapacidade do sistema para continuar a crescer bloqueado por vários “tectos” (energético, financeiro, ambiental …), impulsionado, pela sua própria dinâmica, a devorar as bases estruturais da sua existência, a desordená-las cada vez mais. Autofagia de ritmo difícil de prever que, pela sua natureza planetária e pelo seu alto nível de recursos tecnológicos, não pode ser comparada a declínios de civilizações anteriores.

É incrivelmente actual a previsão formulada por Marx e Engels em plena fase juvenil do capitalismo (Marx-Engels, A Ideologia Alemã, 1845-1846): “Num dado nível de desenvolvimento das forças produtivas, aparecem forças de produção e meios de comunicação, que, nas condições existentes, apenas causam catástrofes, não são já forças produtivas mas de destruição”. De facto, a magnitude do desastre, o seu aspecto escatológico, de destruição dos fundamentos da sobrevivência humana, elevam o dito prognóstico a níveis seguramente não imaginados pelos seus então jovens autores.

Despolarização

O actual processo de decadência deve ser visto como a fase descendente de um longo ciclo histórico iniciado no final do século XVIII que contou com um articulador decisivo: a dominação imperialista anglo-americana (etapa inglesa no século XIX e norte-americana no século XX). Capitalismo mundial, imperialismo e predomínio anglo-americano são um fenómeno único. Uma primeira conclusão é que a organização sistémica do capitalismo aparece historicamente inseparável do articulador imperialista (história imperialista do capitalismo).

Uma segunda conclusão é que, ao ser cada vez mais evidente que no futuro previsível não aparece nenhum amo imperial novo à escala global (a União Europeia e o Japão estão tão decadentes como os Estados Unidos e sugerir a emergência de um “imperialismo chinês” de alcance mundial nos próximos anos é um total absurdo), então, desaparece do horizonte uma peça fundamental da reprodução capitalista global.

O declínio não exclui a agressão militar do Império, antes pelo contrário. Daí decorre a conclusão de que ao cenário provável de desintegração, mais ou menos caótica, da superpotência devemos adicionar outro cenário, não menos provável, de declínio sanguinário, belicista. Quando observamos a evolução ascendente dos gastos militares nos Estados Unidos e a sua conexão com fenómenos político-culturais como o dos falcões da era Bush, as persistências neo-fascistas no sistema de poder (cada vez mais concentrado) e em amplos sectores da sociedade imperial (e dos seus aliados subimperiais europeus e japoneses) somos induzidos a não descartar essa possibilidade.

Crises ideológicas, insurreição global

Algumas linhas de pensamento mostram-se necessárias para compreender a realidade e a sua evolução surpreendente.

A primeira diz respeito à desestruturação psicológica das elites mundiais que enfrentaram uma verdadeira catástrofe ou mega-ruptura em que a decadência ideológica se combina com uma crise de percepção generalizada; perante essas elites a realidade apresenta-se a funcionar com dinâmicas desconhecidas frente às quais os poderosos instrumentos de acção disponíveis são ineficazes ou até contraproducentes.

Os biliões de dólares injectados pelas grandes potências nos circuitos financeiros desde 2008-2009 tiveram resultados muito pobres, o intervencionismo é impotente e o livre jogo do “mercado” leva ao desastre. Por outro lado, a quebra da ordem periférica sinalizada pelo despertar árabe começa a adquirir para essas elites o aspecto de um imenso pântano em expansão, de um pesadelo a que não podem escapar.

Uma segunda linha de pensamento aponta para os limites destas rebeliões periféricas que derrubaram ou deterioraram seriamente regimes elitistas, mas até agora não quebraram, não excederam, as barreiras burguesas; e que parecem conformar-se com reformas democráticas e com modestas melhorias sociais. Nesse sentido, existe alguma semelhança com o ascenso progressista da América Latina na última década.

Um bom entendimento destes movimentos periféricos tem obrigatoriamente que os situar na dinâmica global da crise (actualmente na sua fase inicial) e destacar a enorme importância, decisiva, da mobilização popular democrática que avança de acordo com suas possibilidades concretas, ao ritmo do declínio do universo cultural hegemónico à escala planetária, o estilo de vida moderno de raiz ocidental (consumista, individualista, etc.).

Finalmente, uma terceira linha de reflexão é sobre o “sujeito” do processo de emancipação que se revela como um conjunto plural, urbano e rural, abarcando classes periféricas baixas e médias, operários, camponeses, estudantes, pequenos comerciantes, etc. Isto exige uma reconceptualização do proletariado entendido como massa em expansão, produto da dinâmica do capitalismo mundial que atravessa a velha crise crónica de superprodução, predatória e hiperconcentradora de rendimentos – e entra na sua crise geral de subprodução, entrópica, carregada de barbárie, de genocídio periférico.

Não se trata da ideia eurocêntrica e historicamente falsa que reduzia o proletariado libertador à classe operária industrial (principalmente radicada nos países imperialistas), mas a constatação da existência, cada vez mais numerosa e mais oprimida, de um proletariado plural cuja única possibilidade de sobrevivência digna (ou de simples sobrevivência física, em muitos casos) está na insurreição contra o sistema. Esta massa plural pode chegar a converter-se em força social revolucionária, em negação absoluta do sistema, através da luta em que vai fazendo a sua auto-aprendizagem democrática, à medida que as estruturas de dominação vão entrando em colapso. Não é um processo simples e linear, mas sim um desenvolvimento muito complexo, fruto da crise do sistema.

Em termos concretos, isto significa que o lugar histórico do pós-capitalismo – quer dizer, do comunismo do século XXI – se encontra no interior dessas rebeliões, como parte delas, como avanço consciente, democrático, radical. Alternativa em formação assumindo criticamente as experiências populares em que se inter-relacionam fenómenos “novos” (que nunca o são completamente) com combates de longa duração e que, desse modo, ampliam os seus espaços: a resistência hondurenha, as revoltas árabes, as mobilizações latino-americanas mais recentes convergem com acções de trajectória prolongada como a insurreição colombiana ou as resistências palestina e afegã.

(*) O texto integral encontra-se em www.rojoynegro.info.


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