Da forte suspeita à evidência

Manuel Raposo — 18 Dezembro 2010

socrates-amado.jpgDesde que as últimas denúncias da WikiLeaks sobre os voos da CIA vieram a público, o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o governo têm-se desdobrado em explicações com o fito de negar as evidências. Mas se observarmos em pormenor as declarações, percebe-se que o ministério e o governo estão sobretudo a acautelar prováveis desenvolvimentos do caso que venham desmentir, pura e simplesmente, a tese oficial de que “não houve nada”.

Atente-se nas declarações do ministro Luís Amado.
Diz ele que não houve nenhum pedido formal da parte dos EUA ao governo português para a passagem dos aviões com prisioneiros vindos de Guantânamo; que não foi, por isso, dada nenhuma autorização pelos responsáveis portugueses; que se houve operações secretas elas não foram do conhecimento português … por serem secretas; que as autoridades norte-americanas deram “as garantias possíveis” sobre a legalidade dos voos e “(eu, Luís Amado) aceitei-as como boas”.

Também sobre os voos com prisioneiros com destino a Guantânamo, iniciados pela CIA em 2002, Luís Amado usa a mesma fórmula evasiva: “Não há nenhum indício, até ao momento”.
Semelhante, de resto, ao que Freitas do Amaral (MNE em 2005) fez saber quando as primeiras denúncias vieram a público: “o governo não tem conhecimento” da passagem de aviões da CIA por Portugal “pelo menos desde a tomada de posse do executivo” (de Sócrates).

OK, mas não nos comprometam

Como se torna evidente, o mais recente arrazoado do MNE deixa em aberto a possibilidade de ter havido pedidos, ou simples comunicações, não formais dos EUA a que as autoridades portuguesas não levantaram obstáculos, sem propriamente terem de dar autorização formal. A realidade é mascarada debaixo destas subtilezas de linguagem.

De pouco serve, também, a distinção, em que o ministro insiste, de que os últimos voos referidos eram de “repatriamento” de prisioneiros de Guantânamo para os seus países de origem, uma vez que esses homens, com toda a probabilidade, voltariam a ser detidos e torturados no destino – e possivelmente silenciados – dado terem sido entregues à CIA (alguns a troco de dinheiro) pelas autoridades desses mesmos países.

As contradições em que o ministro e o governo caem ao tentarem esconder a realidade sob uma linguagem de fábula acabam por confirmar as denúncias feitas, agora e desde pelo menos 2007. Com efeito, revela Luís Amado que, apesar de não ter existido “pedido formal”, houve contudo “diligências confidenciais” em 2006, entre o MNE e o Departamento de Estado dos EUA, sobre as quais o primeiro-ministro Sócrates “esteve sempre informado”. Ora, como a imprensa tem referido, Sócrates declarou na Assembleia da República, em Janeiro de 2008, que o governo português “nunca foi consultado” nem “recebeu qualquer espécie de pedido de autorização” para uso do espaço aéreo ou da base das Lajes para transporte ou transferência de prisioneiros.

Arquivamento de conveniência

As implicações do caso não se ficam pelo governo. Confirma-se agora que a investigação iniciada em Fevereiro de 2007 pela Procuradoria Geral da República sobre a implicação de Portugal nos voos da CIA terá sido abafada por pressões políticas do governo e da embaixada dos EUA. É o que se conclui do facto de o embaixador dos EUA em Lisboa ter sossegado os seus patrões em Washington, logo em Setembro de 2007 – ano e meio antes de o inquérito da PGR ter sido arquivado, em Junho de 2009 – de que a investigação iria dar em nada. Fontes de informação do senhor embaixador, identificadas por ele mesmo: juristas e o próprio governo português!

Todo o poder implicado

As revelações agora feitas vêm lançar um pouco mais de luz sobre um caso que envolve todas as forças do poder português desde longa data. A começar em 2001 com o apoio dado à invasão do Afeganistão que significou, uma vez mais, o uso sem restrições da base das Lajes pelos EUA na agressão. Passando depois, em 2003, pela cimeira dos Açores em que Durão Barroso implicou o país em nova agressão, desta vez ao Iraque, e em todos os crimes que se sucederam. E acabando (?) na cumplicidade evidente, apesar das rituais negativas oficiais, com os crimes cometidos pelos EUA em violação de todas as normas do direito internacional, de que os prisioneiros de Guantânamo são apenas um dos casos mais conhecidos.

Toda esta “cooperação” de cavalheiros decorreu, é bom lembrar, com conhecimento da parte das autoridades portuguesas da existência de inúmeras prisões secretas instaladas pelos EUA em diversos países e de outras a bordo de navios de guerra que terão estacionado em águas territoriais portuguesas transportando prisioneiros sujeitos a tortura. Com conhecimento do massacre que estava a ser cometido no Iraque sobre a população civil. Com conhecimento das barbaridades praticadas em Abu-Ghraib.

Pacto de silêncio

A conivência entre forças do poder no propósito de pôr uma pedra sobre o assunto ficou bem patente no início de 2007 quando PS, PSD e CDS, em uníssono, chumbaram a formação de uma comissão de inquérito parlamentar destinada a investigar a responsabilidade do então executivo e dos anteriores perante as ilegalidades cometidas pela CIA. Ficou igualmente evidente na falta de colaboração das autoridades portuguesas com a investigação conduzida pelo Parlamento Europeu, de que se queixou repetidamente o insuspeito eurodeputado do PSD Carlos Coelho. Ficou também à vista na contestação que a eurodeputada do PS Ana Gomes fez ao arquivamento do processo pela PGR, quando havia indícios mais do que suficientes para prosseguir a investigação e chegar a conclusões (ou por isso mesmo…).

Aos pouco, porém, o muro de silêncio e de ocultação abre brechas. Cenas de próximos capítulos estão certamente a caminho. E é por isso que não conseguimos evitar de ver na linguagem oblíqua do ministro Luís Amado uma forma habilidosa de, ele e o governo, irem pondo as barbas de molho.


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