Existe ‘uma posição revolucionária’ sobre «A Crise do Capitalismo»?

Rui Pereira — 15 Outubro 2008

“a vitória universal da irresponsabilidade e do cinismo”
Cornelius Castoriadis (*)

A pergunta do título da peça não é retórica. Trata de saber, em primeiro lugar, que pode ser uma posição ‘revolucionária’. Posição ‘revolucionária’ por oposição ao sentido de ‘reformista’; transformadora, por oposição ao sentido de ‘reformadora’. Muitas diferentes propostas poderão ser revolucionárias, não custa imaginar, relativamente àquilo que nos é quotidianamente representado como a «crise do capitalismo»?

Também trata de saber, em segundo plano, caso possa encontrar-se uma posição argumentativa desse tipo —ao plano do discurso se cingem estas palavras—, por que razão a não vemos ser tomada por quem, de alguma maneira, seria de esperar que o fizesse. Ou seja, as esquerdas com voz mediática.

Sem competência técnica para aprofundar as raízes propriamente económicas da actual situação, que a indústria dos media e da instituição política e retórica dizem ser «uma crise generalizada dos mercados financeiros» (ver, p.ex., em língua portuguesa, as análises do sistema do capital noutros dos seus momentos, na bibliografia de João Bernardo), posso apenas abordar a questão pelas formas discursivas e políticas a que dá azo.

E essas não são excessivamente diversas. Quem se interessar pelo assunto, pode bem fixar um espectro expressivo contingente, e recorrente, de formas. Espectro que herda fórmulas da linguagem administrativa disfarçada de jargão gestorial, a par de um campo semântico, largamente metafórico, de resto, pelo qual a «crise» se diz.

Ao correr da pena, lá vêm, no jargão gestorial, as fórmulas de administração não do discurso, mas, pelo contrário, da sua opacidade: as colecções de siglas, naturalmente, «Euribor, Dow Jones, Euronext, Nasdaq, PSI-20», bem como todos os nomes dos bancos malparados. Mas também: «produtos financeiros altamente sofisticados; praças financeiras, fundos de investimento, fundos de pensões, subprime, aquisição dos activos, extensão do passivo, intervenção, nacionalização, salvação do sistema financeiro, risco sistémico»…

A toda esta ininteligibilidade articulada, tão tremendista quanto salvífica, sucedem-se depois elementos de dois tipos. Os mais abstractos, como sejam diversos estados de espírito, «pânico», «tranquilidade», «serenidade». Coisas mais terrenas e entendíveis: «perda de postos de trabalho»; «vamos ter, todos, que pagar para ultrapassar a crise», «falências», «apertar o cinto» e, sobretudo, «salvar o dinheiro dos pensionistas e depositantes».

No campo metafórico encontramos exemplos igualmente pouco convidativos ao entendimento humano. A retórica da catástrofe natural: «colapso», «terramoto», «abalo», «tremer», «choque» «bater no fundo» etc. A retórica moral e axiológica: «[restabelecer] a confiança»; [manter] a firmeza»; «[cumprir] as obrigações»; «[honrar]os compromissos»; «não desmoralizar perante as dificuldades»; «agir racionalmente». Ou ainda a retórica da nosologia (das doenças e da medicina): «terapia», «cura», «diagnóstico»; «tóxico»,. … Enfim, poderíamos continuar.

A metáfora da «injecção»

De entre todas, poderosa e recôndita, devolvendo-nos aos terrores infantis e à doutrina dos grandes remédios para os grandes males, emerge porém, voando sobre as demais, a metáfora da «injecção» [«injectar liquidez no sistema financeiro»]. Esta não é interessante pelo que diz, como veremos. Mas, antes, pelo que sugere, como se vê e, acima de tudo, pelo que permite não dizer.

Com efeito, nunca é dito, exactamente, explicado com precisão, em que consiste isso: «injectar liquidez». De uma assistência, confesso, mais ou menos ritual à encenação do espectáculo «Crise», a coisa mais parecida com uma explicação para isso foi a escutada a algum comentador especializado em economia (o que torna tudo mais estranho ainda) e que consiste no seguinte: “o Estado compra os ‘activos tóxicos” das instituições financeiras em crise”; ou noutras palavras, e noutro comentador, “o Estado cobre o problema levantado” pelos tais produtos financeiros, taxados ora de venenosos, ora de requintados.

Pois bem, comprar um activo é uma coisa, cobrir uma dívida (inexplicada, e inexplicável?) parece ser bem outra. Para salvar o dinheiro dos depositantes, dar-se-ia dinheiro ao depositante na medida justa do seu depósito, não à instituição que o ameaça de ruína. E poderíamos continuar longamente a argumentar, sem sairmos de um inocente jogo de perguntas em torno desta pouco inocente acumulação de absurdos.

Da técnica para a política

O problema de argumentar sobre a «actual crise do capitalismo», a partir de uma perspectiva transformadora, não parece ter, porém, a ver tanto com as tentativas mais ou menos ideológicas, mais ou menos técnicas, de desconstrução do obscurantismo produzido pelo pseudo-«economês». Parece mais eficaz a tentativa de definir, numa proposta lógica, qual é o género próximo e qual a diferença específica desta chamada «crise». Isto é: em que é ela idêntica e diversa relativamente ao passado histórico de comportamento do sistema do capital?

Mas, de uma perspectiva política que tal imaginar como possíveis estoutras perguntas: quem está a enriquecer ainda muito mais brutalmente, com a «tempestade» do que enriqueceu até aqui com a «bonança»? Como está a processar-se este ainda mais prodigioso, tecnicamente lógico e eticamente sórdido negócio, à custa das «injecções» de dinheiros públicos. Dinheiros não dos Estados mas das pessoas, vertido para os lucros privados, sob o argumento de salvar os prejuízos colectivos? Alguém de maior preparação económica encontrará, sem dúvida, muitos mais pares de perguntas, porventura mais pertinentes ainda.

O problema da (ir)responsabilidade

Todavia, o sistema do capital revela, nestas semanas, à saciedade e às sociedades, duas das suas mais profundas essencialidades: em primeiro lugar, trata-se da mais poderosa e especializada lógica de transferência das riquezas socialmente produzidas, i.e., públicas, para o lucro privado; transferência do produto do trabalho realizado pelas maiorias produtivas, para as minorias acumulativas, rinantes, nos topos das pirâmides política, económica, social e espectacular. E, em segundo lugar, revela também o papel instrumental que aquilo a que se chama “o Estado” teve (e manteve) na génese e na preservação do sistema capitalista, garantindo-lhe de sempre as premissas da sua expansão e as condições para a sua dominação. Estado, lembremo-lo, tão vivamente insultado precisamente pelos mesmos que agora — como sempre, aliás — por ele clamam, travestindo-o de «enfermeira» para lhes aplicar «uma injecção».

Ora são esses, ainda e sempre os mesmos, trata-se, afinal e apenas, de uma pequeníssima minoria, que cuidaram de varrer, orquestradamente, cinicamente, toda a crítica que lhes fosse dirigida como sendo «irresponsável». O apodo de «irresponsável» percorreu toda enunciação de poder dirigida contra aqueles que, com razão ou sem ela, o criticaram precisamente pelas consequências das causas que agora aparecem expostas como fracturas.

Dia após dia, ano após ano, cada voz de esquerda, ou que no mínimo tivesse de si mesma uma auto-imagem de esquerda, foi suprimida, tentadamente domesticada, com o mesmo tratamento: «propostas irresponsáveis». Quem se opunha à ferocidade da flagrante desumanização capitalista da condição humana só o poderia fazer a partir da «irresponsabilidade»: porque «não tinha de governar, nem nunca teria de assumir as responsabilidades».

Quem assim acusa outrem de irresponsabilidade, proclama-se a si mesmo, «responsável». Responsável, pois, de quê? Quem são, então, os responsáveis e os irresponsáveis? Como podem ser poupados esses autoproclamados responsáveis, não ao confronto com o estatuto da sua reivindicada responsabilidade, mas, na linguagem por eles usada, com os concretos resultados da sua cínica irresponsabilidade?

Ora, são, estes, tempos de grande explicitude; nem tudo pode ser mau. Torna-se evidente que o mesmo sistema que privatiza os lucros, socializa os prejuízos. («Vasco Gonçalviza-os», poderíamos nós, portugueses, ironizar). Não o enfatizar, com toda a violência do discurso; esquecer a radicalidade deste questionamento, nas oportunidades que quem, à esquerda, tem de se fazer ouvir nos grandes meios de comunicação, talvez não seja uma irresponsabilidade tão grandiloquentemente histórica, assim. Mas é, por certo, uma triste responsabilidade.

Como é possível não debater, não reflectir, à esquerda sobre duas perguntas-programa para o debate do tempo presente e futuro: que aconteceria se todos levantássemos, de súbito, o dinheiro do banco? Que sucederia a quem, actualmente, o sugerisse, a isso exortasse e por tal causa se batesse organizadamente nos grandes lugares públicos da enunciação?

Sem receio de que qualquer irresponsável me tome por aquilo que — ele próprio — é, modestamente, responsavelmente disponível me confesso.

Que pode ser uma posição radical e transformadora sobre o nosso tempo?

(*) Castoriadis, Cornelius (2000 [1999]), Figuras do Pensável, – As encruzilhadas do labirinto, Lisboa, Edições Piaget pág. 84


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