Fazer contas, ou fazer de conta

M. Gouveia — 31 Janeiro 2008

Numa jornada de oposição ao governo que o BE promoveu, Francisco Louçã denunciou que as desigualdades salariais estão a aumentar; que houve 70 milhões de euros de indemnizações para cinco administradores do BCP; que um administrador ganhava 300 mil euros por mês, o que tantos ganham em 30 anos de trabalho; que há meio milhão de desempregados, dos quais cerca de 300 mil já não recebem subsídio de desemprego; que os lucros das 10 maiores empresas subiram para 6 mil milhões de euros, etc.
E afirmou: «É preciso dizer ao primeiro-ministro que acabou o tempo da aldrabice e é tempo de prestar contas, em nome da justiça e do respeito». De que respeito é que ele está a falar? De quem por quem? Quando disse que tudo isto é resultado da «política de insensibilidade social do Governo», acusando-o de «brutalidade social», estaria a dizer-nos que o governo anda um bocado distraído, e faz umas maldades que lhe ficam mal? Só faltou dizer que temos de chamar os ministros à razão para que tenham um rebate de consciência e deixem de tratar mal os pobrezinhos. Quando apelou à «luta contra a injustiça e a insensibilidade», estaria a dizer-nos que o povo deve convencer o Sócrates a falar com uns bispos que há por aí muito preocupados com a fome, para perceber que não está a seguir os princípios cristãos e que ainda pode ir para o inferno?

É costume o BE criticar o governo acusando-o de “incompetência”, “falta de coragem” ou “falta de visão social” – como se o problema fosse de comportamento e se resolvesse com outra equipa governativa. Então eles não sabem porque é que este governo tem este comportamento e não outro? Que a “brutalidade social” do governo é uma forma de competência na defesa dos interesses dos mais poderosos? Que a sua “insensibilidade social” é uma demonstração de sensibilidade às necessidades de enriquecimento das classes dominantes deste país ? E que, por isso, o capital exultou com a maioria absoluta do PS e não a troca por nenhuma maioria relativa “de direita”?

O problema é que, em vez de se opor claramente ao sistema capitalista, o Bloco tenta lançar uma ponte entre um e outro lado do abismo. Por um lado, enuncia reivindicações dos trabalhadores portugueses; por outro lado, tenta fazer crer que, com boa vontade, um governo emanado da ordem vigente poderá corresponder a essas reivindicações. É nesta contradição que o Bloco serve a ordem dominante. E assim anda a iludir as pessoas e a desmobilizar a energia da revolta.

Quando o BE, na sua jornada de oposição ao governo Sócrates, distribui um jornal em que destaca: «Encerramento de serviços de urgência», «460 mil desempregados», «Perda de poder de compra» e «Referendo na gaveta», a gente aplaude. Quando Francisco Louçã afirma: “Há uma força de protesto e indignação que sabe fazer as contas”, a gente confirma. Mas com as contas feitas de outra maneira: sem fazer de conta que se ignora porque é que as coisas estão neste estado, e tratando de juntar forças dispostas a acabar com este estado de coisas. E o primeiro passo será ajudar a criar um movimento popular para correr com este governo.


Comentários dos leitores

Vladimiro Guinot 3/2/2008, 0:51

Muita gente concordará com M. Gouveia quando afirma que, o primeiro passo para acabar com este estado de coisas, será criar um movimento popular para correr com este governo. Muita gente perguntará: o que virá a seguir?
Tratemos a questão desta maneira: No momento, este governo está a destruir tudo o que conseguimos erguer de bom, ao longo de muitos anos, muitas das vezes através de combates, alguns bem violentos, e sempre em condições desfavoráveis para as forças populares. O que importa, agora, é conseguir obter uma resposta popular, pronta e decidida, contra essa destruição de direitos e liberdades de modo a pôr-lhe fim. Isso só se consegue com: ou uma mudança radical da política do governo (o que está fora de questão), ou com a sua demissão em bloco resultante da acção popular. O que vier a seguir dependerá muito do que o movimento popular vier a aprender na sua acção de rua contra este governo.
É bom que o jornal reerga a bandeira de luta política (M. Gouveia deu o exemplo) que lhe está na origem: Para Mudar de Vida, começar por correr com Sócrates! Que esta bandeira encabece quer o jornal papel quer o jornal net. Assim o espero.
Vladimiro Guinot

Manuel Baptista 5/2/2008, 20:30

«E o primeiro passo será ajudar a criar um movimento popular para correr com este governo.»... ou antes, fazer parte integrante do movimento popular, para acabar com todo e qualquer governo? para instituir o poder popular?
Se somos parte integrante do movimento popular, não vamos «criá-lo» como se se tratasse de insuflar de fora para dentro um espírito de revolta.
O elitismo-vanguardista não tem cabimento, será sempre um enorme engano.

Manuel Monteiro 10/2/2008, 0:53

Camarada Manuel Baptista
Desculpe, mas o camarada vê fantasmas vanguardistas por todo o lado. Então essa do elitismo-vanguardista não é para ter uma discussão séria; pretende arrasar os opositores e, o que para mim é intolerável, com base em chavões ofensivos. Com essas afirmações tão categóricas não estará o camarada a pôr-se numa posição elitista-vanguardista, pretendendo dar lições de cátedra a quem se coloca do lado do movimento popular, não para criar- como o camarada deturpa- mas para ajudar a criar um movimento popular?
O camarada Manuel Baptista tem uma posição sobre as vanguardas e as massas. O camarada Guinot tem outra. Vamos discutir essas posições com base em argumentos sérios e não com chavões ofensivos.
Vanguardas há em todas as actividades do viver humano. Eu orgulho-me muito das posições de vanguarda que assumi no seio - no seio, camarada Baptista, e não de fora a falar de cátedra - da classe operária.
Um abraço
Manuel Monteiro

João Bernardo 16/2/2008, 18:44

O Mudar de Vida, pela sua própria existência, pela gama de assuntos que tem abordado, pela maneira como os trata e pela contribuição que dá para fazer com que certas lutas saiam do isolamento e certos factos não fiquem em silêncio -- por tudo isto o Mudar de Vida é já uma vanguarda na luta anticapitalista em Portugal. Parece-me ser a vanguarda possível nas circunstâncias actuais. Esperamos contribuir para que a posição da classe trabalhadora se reforce, para que as circunstâncias se alterem a nosso favor, mas para isso é preciso abordar as questões de uma forma compreensível e convincente. Pretender que a nossa actuação só se legitima se as massas avançarem antes de nós é condenarmo-nos a ficar na retaguarda, o que não me parece bom. E correr a grande distância de todos com a bandeira desfraldada ao vento é condenar-se ao isolamento, o que se me afigura igualmente mau.

Artur 6/3/2008, 2:45

Desculpem-me a presunção, mas... já alguém "vos" avisou de que o partido comunista não é, nem nunca foi O partido da classe operária; que nunca existiu verdadeira luta de classes porque NUNCA existiu qualquer coisa semelhante, sequer, a uma consciência de classe; que a História não tem um sentido, uma direcção, não se esgota no socialismo ou no comunismo-que a visão materialista e teleológica de marx é datada e já não faz sentido ser defendida nos nossos dias ; que não é possível forjar o "homem novo" suprimindo a democracia??????????
Corri o risco de ser tomado por arrogante, limitei-me, contudo, a partilhar algumas dúvidas que certas teses me causam.
Boa noite


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