Um Rio de dinheiro para La Féria, em troca de quê?

M. Gouveia — 27 Outubro 2007

rivoli2reduz.jpgOs negócios pouco transparentes legitimam todas as suposições. E na sociedade em que vivemos, adoradora de um só e único deus, o dinheiro, os poderosos nada fazem à borla. Está nos genes do capitalismo. La Féria e os seus espectáculos têm uma determinada função social, cuja utilidade é reconhecida e paga pela classe no poder.

A cidade do Porto dispunha de um equipamento cultural, pago e sustentado pelos nossos impostos, através do município e do Ministério da Cultura: o Rivoli. De repente, no fim do ano passado, o presidente PSD da Câmara decidiu extinguir a empresa pública que o geria, a Culturporto, e entregar o Rivoli ao produtor comercial Filipe La Féria. Para além das noticiadas peripécias politico-jurídicas do processo, interessam-nos agora dois aspectos concretos deste negócio: as condições financeiras em que ele está a ser feito e as suas implicações ideológicas e culturais.

Começando pelo segundo, não é de surpreender esta cumplicidade entre La Féria e os meios políticos do PSD. Basta lembrar o tempo em que o primeiro-ministro Cavaco Silva e o Secretário de Estado da Cultura Santana Lopes lhe entregaram o mais emblemático e histórico teatro português – o Teatro Nacional D. Maria II – para lançar as bases do seu actual negócio. Os mesmos “apoios” funcionaram quando La Féria se instalou no Teatro Politeama, que ainda ocupa. As produções de La Féria, sucedâneo pimba das moribundas revistas do Parque Mayer, fazem parte da desesperada tentativa desta burguesia foleira que nos governa para arremedar um substracto qualquer, como diria o Esteves do Herman. O grande arranque foi o Passa Por Mim No Rossio, evocação saudosista e reaccionária dos “bons tempos” da Outra Senhora, em que éramos todos muito felizes. O pico do negócio foi Amália, jogada comercial mesmo em cima do acontecimento da morte da artista, que – quisesse ela ou não – foi um dos sustentáculos dos 3 efes de Salazar “fado-futebol-Fátima”. Agora, como argumento imbatível para a versão nortenha da referida burguesia pimba, personificada em Rui Rio, La Féria acena com algo mais substancial (e de maior utilidade prática eleitoral): um musical sobre a vida de Francisco Sá Carneiro, em cujo título se combinam sabiamente dois pendores retrógrados: o machismo e o pacóvio “nacionalismo” nortenho. Chamar-se-á, diz La Féria, Um Homem do Porto. Espera-se o pior, pois sem dúvida La Féria se irá ultrapassar para pagar o favor.

Entremeados com este reportório mais politico-ideológico, os musicais de plástico já produzidos – tipo Maldita Cocaína, My Fair Lady, A Canção de Lisboa, Música no Coração e Jesus Cristo Superstar – asseguram o ambiente propício e o fluxo de clientela. Com um eficaz trabalho de publicidade e angariação, visando as camadas mais frágeis da sociedade (os velhinhos e as crianças) e as estruturas sociais mais corruptíveis (as Câmaras Municipais), La Féria tem sempre as salas cheias. No Rivoli, o Jesus Cristo Superstar tem esgotado, só com uma ligeira descida em Agosto (entre 70 e 80%).

Mais espectacular, contudo, é o outro aspecto deste negócio: o das relações financeiras entre La Féria e a Câmara de Rui Rio. O “contrato de acolhimento” prevê o pagamento, pela Todos Ao Palco (de La Féria) à CMP, de 5% das receitas líquidas. Não conseguimos apurar o que, neste caso, signfica “líquidas”. Facto é que, tanto quanto nos informaram as nossas fontes, e embora estando a facturar salas esgotadas desde a estreia em 14 de Junho, a Câmara ainda não recebeu um tostão de La Féria. É certo que foram interpostas nos tribunais várias providências cautelares contra este negócio, o que torna a situação actual algo fluida e provisória. Mas a bilheteira está a funcionar em cheio. E La Féria já anuncia a estreia portuense de Música No Coração para 15 de Novembro…

Outros aspectos nada edificantes do negócio: primeiro, ao acordo inicial foi acrescentada uma adenda (não noticiada) que prevê que, no final do espectáculo actual, a CMP poderá comprar o equipamento que o La Féria adquiriu para a sua produção– muito provavelmente ao preço que custou, pelo que o cavalheiro acaba por não gastar nem um centavo no material de que precisava e que não existia no Rivoli! Quem paga? Rui Rio com os nossos impostos.

Foram feitas obras de adaptação no Rivoli – como retirar cadeiras, retirar painéis acústicos, etc. – as quais o mais certo é terem sido pagas pela Câmara. Mais: há três funcionários da falecida Culturporto, que estão a trabalhar literalmente para as Produções La Féria, contratados a prazo por empresas municipais – dois deles na GOP e um terceiro na Porto Lazer.

Um dia destes, La Féria podia estrear no Rivoli um novo espectáculo intitulado A República dos Bananas. Os bananas somos nós, que consentimos esta vergonha.

La Féria tem todo o direito de criar e produzir os espectáculos que quiser. E quem gostar que pague para os ver. Não se pode é admitir que os dinheiros públicos os paguem, assumindo como sendo de todos as suas opções estéticas e ideológicas.


Comentários dos leitores

rui 15/11/2007, 2:19

Exactamente. Não se trata de um investimento na Cultura mas sim numa indústria de lazer, que tem todo o direito a existir e gerar receitas mas não às custas dos impostos de todos nós.

Vìtor 11/7/2009, 17:41

Não percebo porque é que se protesta tanto...
A Câmara gasta os nossos impostos com o sr. La Féria? E antes gastava com quê? Com pseudo-espectáculos, de pseudo-cultura que ninguém via. Pelo menos agora milhares e milhares de pessoas "aproveitam" esses gastos, passando bons bocados de entretenimento a ver as peças do sr. La Féria. E não me venham dizer que são peças para a alta sociedade. Eu tenho ido ver e os bilhetes são a 10 euros. Já agora, para os detractores, gostava que me explicassem onde viram melhor versão do "Jesus Cristo Superstar". É que eu já vi esta peça em Londres e nem sequer se aproximava da qualidade da versão do sr. La Féria.


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